O tempo é importante para os alimentos. Transforma-os, dá-lhes carácter, aprofunda sabores, faz despertar outros novos. Muitos alimentos são fermentados, e uma fermentação pede tempo, outros são curados, outros deixados a maturar. A carne maturada, hoje tão na moda, desenvolve características que a carne “fresca” não tem. Os queijos com longas curas têm sabores mais complexos e interessantes — assim como os vinhos. Há vida dentro destes alimentos, bactérias que os transformam, trabalhando para nós, em caves sombrias ou em câmaras frigoríficas.
O padeiro, a massa velha e a fermentação longa
Mário Rolando chega à redacção do PÚBLICO com um saco cheio de pães feitos por ele e um exemplar do livro 6000 anos de pão, de Heinrich Eduard Jacob. Vem satisfeito com o trabalho que fez: estes pães estiveram a fermentar 25 horas, tantas quantos os anos que o PÚBLICO está a festejar neste seu aniversário.
“Foram 25 horas de fermentação no frigorífico, a 8 graus, uma temperatura a que levedura trabalha muito devagar, mas trabalha. E por isso temos um pão rico em produtos de fermentação”, diz, enquanto tira os pães da mala e vai explicando as diferenças entre eles. Têm farinhas diferentes e leveduras também diferentes — um deles até tem miso, uma experiência que Mário nunca tinha feito antes — mas em comum, para além do tempo de fermentação, têm uma coisa muito importante: a utilização da massa velha.
“Em todos eles usei 50% de massa velha em relação ao peso da farinha. O nosso pão português com mais massa velha é o alentejano, que tem 20%”, afirma. Neste caso, Mário ainda decidiu usar duas massas velhas diferentes, mas fê-lo mais por dificuldade em decidir do que por outra razão. “Podia ter usado só uma, mas não consigo. Olho para uma, cheiro, acho fantástica, e depois fico indeciso. Tenho uma com dois anos, outra com um ano e meio, vou misturando e elas vão ganhando uma vida diferente e vão tendo cheiros e sabores diferentes.”
Mário é formador na Associação dos Cozinheiros Profissionais de Portugal, onde ensina panificação e pastelaria, e recentemente tem feito o pão para jantares de chefs– o último foi o de Leo Carreira, um dos jantares da iniciativa Sangue na Guelra, organizado pela Amuse Bouche na Cozinha Popular da Mouraria, em Lisboa. E, à mesa, os pães de Mário distinguem-se precisamente por essa complexidade de aromas e sabores que vêm das massas velhas e das fermentações longas.
“Tradicionalmente usavam-se muito as massas velhas porque era a única forma de fazer crescer o pão”, recorda. Era assim com a bisavó de Mário, que, em Messinas, tinha a sua massa velha e todos os finais de semana fazia pão. “Agora muitas pessoas estão a voltar a cozer o próprio pão”, afirma, garantindo que tem havido um interesse crescente por esta questão das massas velhas.
“No tempo da minha bisavó não havia fermento comercial na serra. Mas depois começou a ser fácil comprar levedura, primeiro a de cerveja, depois a comercial, e foi-se perdendo o hábito. E temos um polvo gigantesco que são os fornecedores de matéria-prima para padaria e pastelaria, multinacionais que têm uma força brutal e que invadiram o mercado.” Mas, continua Mário, são estas mesmas multinacionais que começam também a reconhecer a importância das massas velhas e dos processos artesanais. “Algumas têm já colecções extraordinárias de massas velhas de todo o mundo.”