A viagem começou há nove dias e os ocupantes dos 23 jipes (o 24.º ficou por Marraquexe, à 5.ª etapa, devido a problemas com a caixa automática), duas motas e um camião já denunciam cansaço. Esta é a última vez que se dorme em acampamento, mas já é a quarta noite (e segunda consecutiva) sem um duche - excepto para alguns mais prevenidos que trouxeram de casa um portátil - ou mesmo uma casa de banho por perto além das pequenas dunas que vão servindo de abrigo. Valemo-nos de toalhetes humedecidos que servem tanto para lavar como para refrescar a meio do dia que, depois de nos acordar envoltos numa brisa gélida, aquece para lá de uma tarde de Agosto.
O pó é responsável por algum mal-estar, mas também é graças a ele que vamos apresentando uma cor cada vez menos pálida, que de bronzeado pouco tem. Já os cabelos denunciam os banhos salgados desse dia, num mar com laivos verde-esmeralda cuja visão, depois de dias de pedra, areia e gravilha a perder de vista, permitiu a alguns recuperar ânimo. Já a outros, a proximidade do oceano e os rios de areia que havia para atravessar impuseram o devido respeito: atascanço sim, atascanço sim, a maioria não escapou à ratoeira da amolecida areia e houve quem tivesse até de lidar com um banco de lodo que se estava a revelar esfomeado por metal o suficiente para abrir uma brecha ao medo. Tudo se resolveria com guinchos, pás e mais guinchos.
O purgatório do asfalto
A ideia de percorrer o mítico percurso da prova Paris-Dakar, que entretanto se mudou para a América do Sul, pode ser aliciante para qualquer fã do todo-o-terreno. Mas até conseguir arrancar algum do prazer que os veículos TT permitem - e que têm no seu nervo central a grande habilidade de nos fazerem chegar a zonas onde nunca assentaríamos pé por outro meio de transporte sempre com o espírito de "deixar os sítios por onde se passa incólumes" ou até mesmo "melhores do que os encontrámos", sublinha-nos um dos participantes - há muito alcatrão a palmilhar.
Desde o Cartaxo até Portimão, em duas etapas que fecharam o ano 2011, e daqui até Marraquexe, o asfalto é rei. Estradas e auto-estradas que parecem não ter fim e que surpreendem pelo excelente estado de conservação. Não há buraco à vista pelas faixas de rodagem e, embora passem por nós veículos que nos arregalam os olhos, como carros a carregarem camuflados tanques de guerra ou camiões cuja carga nos parece a qualquer instante tombar-nos em cima, segue "tudo a rolar", como se ouve tantas vezes pelo rádio, "dentro da normalidade".
A passagem da caravana arranca sorrisos e saudações de gente que avistamos nos sítios mais inusitados, como no meio de uma auto-estrada, sem que haja um único ponto de luz a indicar-nos uma qualquer zona habitacional. E uns quantos até posam para a fotografia. Sempre que os carros param, brota gente de todos os lados. Chegam a correr e com as mãos (e os braços e os pescoços e os bolsos) a transbordarem de bugigangas que tentam a todo o custo (e por qualquer valor) vender.
Como os três homens que, assim que imobilizamos as viaturas após uma das muitas portagens, surgem, não se sabe bem de onde, com colares coloridos em riste. "Flor de piño, señora", diz-nos um, arranhando uma tentativa de espanhol, "un'eura dez dirhams" (o câmbio do euro estava por estes dias a 10,80 dirhams). Para quem não gostava de colares havia como opção cestas de vime ("una, cinq'eura"), enquanto um dos homens, de traços enrugados e cujo sorriso revela a ausência de dentes, nos exorta a trocar uma moeda de 50 cêntimos por dirhams.