Enquanto se ouvem os roncos dos motores vindos das dunas, num cantinho do acampamento onde passamos a noite grelham-se peixes para o jantar. Respeitáveis douradas e pequenos atuns apanhados nessa manhã no mar, que nos acompanha por estes dias, e cujos corpos escamados as mulheres amanhavam quando chegou a caravana que se propôs, em 15 dias e em todo-o-terreno, ligar Portugal a Dacar, numa simulação aventureira da prova que ficou por cumprir em 2008.
A noite já começou a cair e com ela o fresco que nos impele a ficar por perto das brasas enterradas na areia e sobre as quais a grelha de protecção de um esquecido frigorífico recebe os peixes que homens e mulheres, de garfo em punho, vão virando à vez. O ritual junta vários aldeões que parecem esquecer-se que ali estamos.
Mulheres sentadas vão acolhendo as crianças pequenas que procuram o calor dos seus colos. Dois homens, carinhosamente abraçados, riem-se do esforço de quem está de serviço à grelha: uma mulher de cigarro ao canto da boca e um homem com uma pequena lanterna para verificar o estado de cozedura do jantar vão discutindo, provocando risadas entre os que os observam. Quer-nos parecer que tentam concluir qual dos dois terá mais jeito para a tarefa, mas nada entendemos do que dizem.
Uma pequenita aproxima-se em busca do calor e vai-se encostando, qual gato mimoso. Não revela carência, mas curiosidade por estes seres de tez pálida e cabelo escorrido que chegaram montados em bichos barulhentos e que levaram a que as casas da aldeia - estruturas improvisadas em madeira, lata, plástico, pano - ficassem despidas de colchões e almofadas, que trouxeram para nosso conforto. Já à tarde se tinha juntado à nossa beira para partilhar bolachas. "Primeiro para os bebés", esclarecem-nos. Só depois para os petizes mais velhos, entre os quais alguns desdentados, denunciando a idade.
Os peixes vão entrando e saindo da grelha e os nossos anfitriões de vez em quando lembram-se que ali estamos e sorriem-nos. O tempo passado à beira das brasas presenteia-nos com as grandes e reluzentes ovas que o homem, que cuidadosamente as sacou às entranhas de um dos peixes, partilha connosco ao mesmo tempo que vai amontoando o pescado numa larga bacia de metal que mantém próxima do lume com o objectivo de conservar o jantar quente.
Estamos em Teishott, Mauritânia, aldeia piscatória do Banc d'Arguin, uma área protegida que atravessamos, o mais junto ao mar possível, por vezes até ao sabor das ondas e respeitando as vontades (e horas) das marés, com uma autorização especial e escoltados por duas colunas militares que nos mantêm em segurança mas também debaixo de olho.
Consegue-se imaginar que a aldeia, onde a única luz artificial é providenciada por um gerador, adormece cedo. Mas hoje o relógio biológico é adiado e, mesmo com o escuro por companhia, há músicas e dançares enquanto se criam laços de amizade à volta de uma roda composta sobretudo por mulheres e crianças. Também há homens, mas não metem conversa. Já elas dizem os seus nomes para, logo a seguir, nos perguntarem pelos nossos. Os ‘l's são difíceis de enrolar e os "r"s de pronunciar, o que faz com que alegremente nos rebaptizem. As risadas são inevitáveis e depressa comunicamos por uma linguagem mais universal: a da dança. Ritmos compassados que nos vão pacientemente ensinando até chegar a hora das birras de sono dos mais pequenos, que ditam a hora da festa terminar.