Uma realidade que, com muitas excepções, se observa ao longo do território marroquino que percorremos: o turismo é protegido e as autoridades andam quase com os visitantes ao colo (excepto se algum atrevido não respeitar as sinalizações ou as paragens obrigatórias), mas a postura europeia provoca a repulsa de vários olhares com que nos cruzamos e que nos querem forçar a baixar a cara, tal como as jovens com que nos cruzámos logo no primeiro dia.
Praça de vida
O seu nome, dizem algumas teorias, aponta para um mundo de defuntos, com Djema El-Fnaa a poder traduzir-se por "assembleia dos mortos". Mas, o que se encontra na praça afecta à Medina de Marraquexe, sobretudo após o pôr do sol, é uma explosão de vida que funciona como um despertar abrupto de todos os sentidos. O olhar cruza-se com gente de todos os feitios, os cheiros manifestam-se em diferentes intensidades, os sons atropelam-se, os sabores sentem-se ainda antes de os sujeitarmos ao teste do palato. Depois há ideias que fervilham, políticas que se discutem, tertúlias que se formam. Cobras e macacos amestrados que vão mostrando habilidades, charretes para passeios turísticos, motocicletas barulhentas que nos envolvem no seu rasto de fumo.
Caminhar pela praça é como entrar num filme sem que os personagens dêem pela nossa presença. Todos estão nas suas vidas, parecendo alheios a tudo o que se passa à sua volta. Particularmente aos olhares dos curiosos, que apenas servem para atrair um ou outro vendedor de cigarros, assim como uma mulher, com uma criança a trote, a tentar vender ao melhor preço pensos rápidos e lenços de papel e que sob os panos, notamos, esconde o pijama já vestido.
Enquanto atravessamos o pulsar da praça, de um lado vêem-se barraquinhas que exibem toneladas de laranjas reluzentes e quepropõe sumos naturais. Outras vendem frutos secos: amendoins, avelãs, cajus. Mas também tâmaras e figos caramelizados e, claro, as mais diversas especiarias: cominhos, canela, açafrão... Do outro lado, somam-se toldos brancos que marcam pequenosrestaurantes onde mesas de tampo improvisado recebem reuniões de negócios, turistas curiosos, famílias marroquinas.
Pelos corredores, vários rapazes tentam cativar-nos para o peixe fresco ou para a carne tenrinha que têm para servir. Qualquer hesitação pode levar a um mal-entendido e este a uma disputa pela clientela. Acabamos por nos sentar numa minibarraquinha, onde uma espécie de balcão-mesa ladeia os tachos de onde dois homens vão tirando, com mãos que já não se queimam, a carne para corte. Comem-se cabeças de carneiro, algumas das quais expostas inteiras, e, à falta de talheres, lambem-se dedos. As batatas fritas para acompanhar vêm de uma outra barraca onde os nossos anfitriões as vão buscar. E a harira, desta feita sem Knorr ou Maggi à mistura, chega a ferver de um outro restaurante, servida com colheres de pau. Não há nada que se peça que não se arranje: até um pepino para acompanhar uma tajine.
A refeição estava perfeita até à hora de se pagar a conta: cálculos para ali, cálculos para acolá, o marroquino que recebe o dinheiro garante faltar um pagamento, enquanto os comensais asseguram que o valor total já foi entregue. E, embora a carne se tenha desfeito na boca e a harira tenha sido da verdadeira, a noite acaba com a certeza de não se voltar à barraca n.º 15.