Marraquexe deixaria outro tipo de travo amargo, quando os funcionários do hotel apreenderam discretamente as bagagens dos membros da organização da aventura sob o argumento de faltar o pagamento de uma qualquer taxa - situação que se resolveria com a intervenção da polícia e do delegado do Turismo.
Já à Fugas, a cidade vermelha, de trânsito caótico e avenidas largas, adoçou a boca com um viajado café expresso, de gosto acre e textura pesada, fruto da boa vontade do dono de um botequim onde se almoçaram condimentadas brouchettes e que nos ofereceu o remate da refeição indo buscar os copinhos ao café do outro lado da agitada estrada.
Venham as pistas
O dia em Marraquexe até parece querer fazer-nos esquecer o propósito: unir Portugal à capital do Senegal por todo-o-terreno. E ainda falta muito alcatrão até se conseguir atingir as pistas que os veículos já tanto anseiam. Uma longa viagem por auto-estrada até Agadir e daqui, já por estrada, rumo a Sidi Ifni, cidade junto ao mar onde chegamos com a queda do dia.
Pelo caminho, penetramos cada vez mais as entranhas de Marrocos, passando montes e montanhas, zonas áridas e outras verdejantes, vilarejos que parecem perdidos no e do mundo. Agadir chega com um cheiro que tão depressa nos parece cebola refogada como detritos de um deficiente sistema sanitário.
O lixo faz parte da paisagem e as casas de banho já deixaram de ter sanitas e autoclismos, substituídos por loiça de chão com um buraco directo para o esgoto e um balde sob uma torneira gotejante. E à medida que se viaja mais para sul menores são as condições de higiene encontradas, como as de uma casa de banho numa bomba de gasolina em Sidi Ifni, cujo cheiro nauseabundo nos leva a aguentar um pouco mais.
É com noite cerrada, e depois de várias peripécias pelo caminho, que incluíram um jipe avariado, que chegamos ao primeiro troço de pista. E subitamente parece que cada pedacinho de alcatrão negro valeu a pena. Fintam-se pedregulhos, avança-se a cuidado nas inclinações, acelera-se quando a lua crescente assim o permite. É oficial: conseguimos sobreviver ao purgatório do alcatrão e avançar para o que variaria nos dias seguintes entre um paraíso de sensações e um inferno de emoções. Mas já lá chegaremos: antes uma noite no complexo turístico de Fort Bou-Jrif que funcionará como uma introdução às duas noites que se passarão em pleno deserto do Sara. Ainda sem privações e com mimos que nas noites seguintes nos haveriam de parecer luxos: tendas bem abrigadas; colchões macios; mantas quentes; casa de banho, ainda que comum, funcional e servida por um duche pujante; refeição completa; espectáculo de cobras e danças berberes.
Noites de mil e uma estrelas
É com a experiência na voz que alguém aconselha: "Cuida bem do deserto que ele cuidará bem de ti". A partir de Bou-Jrif começa a aventura a sério, em que o bom senso é tão ou mais importante que uma boa preparação mecânica para as viaturas e física para os seus ocupantes. Rumamos ao Sara Ocidental, onde entamos ao sexto dia, pela hora de almoço. A despedida da civilização faz-se em Tan-Tan, onde uns quantos abastecem, enquanto outros procuram jerricans para encher com combustível suficiente que lhes permita chegar à apocalíptica Es-Smara. Há os que arriscam ainda abastecer já no Sara Ocidental, onde o combustível é mais barato.