Por algum motivo, o deserto acabaria por nos devolver a reverência com que optámos por tratá-lo ao colocar no nosso caminho um solitário dromedário, o qual, após uma dança (divertida para nós, mas certamente angustiante para o bicho), se daria à morte para a objectiva. Depois do brinde do nada, chegaria um descanso de duas noites no Dakhla Attitude, um complexo de bungalows, encaixados numa ravina e debruçados sobre o mar, que diariamente recebe amantes do kitesurf e que nos acolheu a necessidade de repouso - que depressa se transformaria em sede de mais pó.
Atravessando fronteiras
A maior prova de uma expedição todo-o-terreno por África poderia encontrar-se nas pistas. Mas são as fronteiras para as quais a maioria dos veículos não chega preparada. As esperas são longas e o que poderia demorar minutos depressa se transforma numa espera de horas. A entrada em Marrocos, para o grupo em que a Fugas seguia via Tânger, já tinha obrigado a algumas diligências. Mas é a saída do país que se revela mais complicada.
Desde a chegada dos carros ao posto fronteiriço até à entrada efectiva na Mauritânia, que incluiu a saída para o vazio da designada "Terra de Ninguém" - uma língua de terra de 3,5km que separa Marrocos da Mauritânia e que nos recebe como se de uma espécie de limbo se tratasse, afrontando-nos com toneladas de sucata e negócios obscuros protagonizados por gente que se comporta quais sanguessugas -, passaram-se cerca de sete horas.
Mais de metade para conseguir sair do primeiro país, cuja fronteira vai reunindo TIR amontoados, turistas em autonomia, viajantes solitários, expedições de aventura como a nossa. A observar-nos há guardas, agentes aduaneiros, militares, gendarmes... Controlos a atravessar até ao último centímetro marroquino e sempre em contra-relógio: a fronteira mauritana encerra às 18h e, mesmo depois de atravessarmos a salvo a dita "Terra de Ninguém", ainda temos pela frente quatro postos de controlo (um deles, a Fugas passou a pé, enquanto participava num esforço conjunto de fazer café entre as filas e abençoado por um dos guardas fronteiriços) para podermos dizer que chegámos à Mauritânia. E, mesmo depois disso, há a necessidade de efectuar seguros das viaturas. Num buraco escuro, em cujo letreiro sobre a porta se lê "Café Restaurant", elaboraram-se apólices à luz da lanterna.
A Mauritânia, cantada n'Os Lusíadas como "Terra que Anteu num tempo possuiu,
Deixando à mão esquerda; que à direita/ Não há certeza doutra, mas suspeita", é uma estreia para a larga maioria dos que seguem na caravana. Chegamos com preconceitos sobre as leis - há até quem diga que é proibido as mulheres conduzirem no país - e sobre a falta de segurança (um facto quando se envereda pelo interior, explicam-nos). Mas ao atravessarmos o país de ponta a ponta, sempre pela costa e com a companhia dos incansáveis ecoguias da Associação dos Amigos do Banc d' Arguin, resta-nos apenas a certeza de abrigar muitas e diferentes realidades: a de um acampamento à beira-mar, viciado pela incursão turística e com algumas tentativas de aproveitamento em relação aos visitantes; a da aldeia piscatória, onde grelhámos peixe e onde nos exigiram o respeito pelos bebés e velhos; a dos pescadores ao longo da costa com que nos cruzávamos; a dos miúdos de Mamghar onde deixámos a petiz Maria feliz com um conjunto de cadeaux; a dos talhos a céu aberto dos vilarejos por onde passámos; a da capital Nouakchott, onde o trânsito infernal parecia coordenar-se sozinho na perfeição e onde pelas ruas se vêem cabras a pastar ou até uma vaca morta, abandonada à beira da estrada.