Num passeio paralelo ao Danúbio, deparamo-nos com a estátua de uma jovem a brincar com o seu cão. Permanece quase invisível ao olhar distraído, mas Péter Bencze, guia atento, conduz-nos na sua direcção. Pede que reparemos verdadeiramente nela. "Devia ser alegre", diz. "Mas repara na expressão dela. Está triste, cheia de melancolia. Muito húngara esta estátua". Não nos surpreendemos quando, dias depois, damos por nós, como num sketch dos Monty Python, a discutir com uma jornalista húngara qual dos povos, o português ou o húngaro, é mais deprimido- cada um tentando provar, obviamente, que pertence à nacionalidade mais dada à depressão, como se isso fosse uma vitória. Não. Não sabemos se precisaríamos de mais tempo, de mais conversas e de mais gente para descobrir o que é necessário para compreender os húngaros. Pode ser até que, apesar da simpatia do trato, continuem tão impenetráveis quanto a sua língua, vinda com os magiares da Ásia, mas, a partir de agora, defenderemos Budapeste.
Adriano vê o seu império
Ao aventurarmo-nos pela cidade o primeiro impacto é o da arquitectura. Caminhar por Budapeste pode ter efeitos secundários em pescoços frágeis. Para apreciar o que vemos, temos que apontar alto. Literalmente: as deslumbrantes fachadas dos edifícios de Arte Nova, construídas na passagem do século XIX para o XX, quando Budapeste e Viena eram os dois centros do Império Austro-Húngaro, só podem ser devidamente apreciados de nariz no ar. Os mosaicos, as decorações de cerâmica, a elegância das formas impressionam. Poderíamos passar horas em contemplação de flaneur. Mas, por deslumbrantes que sejam as fachadas recuperadas ou a arborizada Andrassy Utca, o grande boulevard onde se concentram lojas de luxo, cafés sofisticados e, nas artérias próximas, a Ópera ou a Academia de Música Ferenc Liszt, não são simplesmente esses traços, os que a levaram a ser considerada a "Paris do Leste", que contribuem para o magnetismo de Budapeste. O seu encanto não nasce por comparação. Não é cidade histórica transformada em museu impressionante à vista mas de vida asséptica, imutável.
Péter Bencze, o guia que nos acompanhou durante a estadia, é um apaixonado por Portugal. Descobriu o país quando, após a queda do regime socialista, decidiu viajar para ocidente, o mais a ocidente possível. Ao sair da estação de Santa Apolónia, ao ver Alfama e as tascas com velhos homens de boina, ao descer depois até Sagres, não resistiu. Tanto que é hoje um conhecedor profundo da história, da arte e da literatura portuguesa; tanto que nos surpreende ao recitar versos d'Os Lusíadas em que Camões refere a lenda da origem húngara do Conde Dom Henrique, pai de Dom Afonso Henriques e possível descendente de Estêvão I, o fundador da nação húngara e o primeiro rei católico do país. É de olhos no Danúbio, perante a ponte da Liberdade, uma das sete que ligam Peste a Buda, com o Grande Mercado nas nossas costas, um dos muitos edifícios (mercados, universidades) inaugurados em 1896, ano da aparatosa exposição nacional que celebrou mil anos de história húngara, que Péter nos fala desta especificidade húngara nascida da sua geografia. País da Europa central com localização privilegiada, a Hungria tem uma história tumultuosa. Era dali - Péter aponta para a margem de Buda - que o imperador romano Adriano observava preocupado a fronteira oriental do seu império.