Maria do Rosário uniu o destino à panificação no dia em que pediu Porfírio em namoro, já lá vão mais de 50 anos. Filho e neto de moleiros, Porfírio levou a juventude a tentar contrariar a profissão que lhe corria no sangue — era ofício demasiado duro para tão pouco sustento. Andou no Ultramar, foi serralheiro numa oficina de mecânica em Pero Pinheiro. Mas quando se casou com Maria, tinha ela 25 anos, cedeu ao negócio da família.
O ordenado era pouco mas certo para uma vida inteira e dava trabalho para dois. Ele especializou-se nas artes da moagem, ela tornou-se padeira. Juntos laboravam todo o ciclo do pão em Santo Estevão das Galés, da plantação do trigo à venda das fornadas feitas todas as quartas e sábados, quase sempre esgotadas no próprio dia. “Tenho para mim que era o melhor pão de Mafra”, defende Mário Pereira, director do Palácio Nacional de Mafra. Hoje em dia, apenas sai pão do forno de lenha aos sábados, na quantidade certa para “congelar para o resto da semana” e distribuir “uma sacadinha” pelo filho e pelos irmãos, mais algum que vende a quem ainda passa à procura, conta Maria do Rosário, de 73 anos, a viuvez tingida na roupa, nos collants grossos, nos Crocs com rebordo de pêlo.
Mário conheceu o casal há muitos anos, através de um vizinho, natural da região. Um dia desafiou-o “a ir ao pão” e levou-o à pequena panificadora tudo-em-um de Santo Estevão das Galés. “O pão era formidável”, recorda. Desde então, é paragem obrigatória quando passa por esta zona do concelho de Mafra, com maior regularidade desde 2008, quando se tornou director do palácio. Ora para comprar pão e sacas de biscoitos “quebra dentes”, ora para trazer mais um futuro cliente. O pão já não sabe ao mesmo sem as farinhas do moleiro, diz quem provou de um e de outro. Mas a visita vale a pena pela(s) história(s) que encerra. “Se soubermos respeitar e salvaguardar estas memórias, melhor nos compreendemos e melhor nos preparamos para o futuro”, defende Mário.
E, por isso, aqui estamos, frente a uma fileira de casas engalanadas por roupa estendida de porta a porta, no Largo de Santo Estevão, a meio de uma visita guiada por Mário Pereira ao concelho. O pão de Mafra é o mais conhecido dos pães saloios. Tornou-se selo inevitável nas estantes dos supermercados e imagem de marca da região. Mas de saloio a maioria já terá pouco, sujeita à pressão dos números que acarreta uma procura — e produção — a nível nacional. Em Santo Estevão das Galés, não só se trabalhava cada etapa do ciclo de produção — do semear o trigo ao vender o pão —, como tudo era feito à moda antiga. Ou quase. O moinho de vento ainda se ergue alvo sobre o monte — “o meu filho vai lá caiar todos os Verões, é uma recordação do bisavô” — mas cedo a produção começou a fazer-se dentro de casa. Dizia Porfírio: “Para ganhar pouco, faço por mim tudo.” E lá criava mais um acrescento ao edifício, mais uma sala com maquinaria artesanal.
Ainda lá está tudo. As mós de pedra movidas a motor, as máquinas que “dançavam” e “lavavam” cada tipo de trigo para lhes tirar as sujidades, o peneiro, a balança, os tubos que caem do tecto e as sacas no chão, eternamente à espera das sementes, das farinhas, dos farelos. Tudo suspenso no tempo por um véu de pó. “Para mim era tudo trigo mas ele sabia identificar cada qualidade”, recorda Maria. Do “aviador” e da “sem fim”, como lhes chamava Porfírio, saía cada bago limpinho e “com a lágrima de água que ele queria”. Cada tipo de trigo pedia-lhe tratamentos e tempos diferentes e ele sabia escutá-los. “O meu moleiro tinha o laboratório nos dedos.” O controlo de qualidade fazia-se de sentidos apurados pela experiência empírica. Quando começaram a exigi-lo, lá enviava as farinhas “para um laboratório em Lisboa uma vez por ano”. “Vinha sempre tudo certinho, nunca encontraram um problema”, diz Maria do Rosário. Mais do que aquele certificado de qualidade, orgulhava-a a confirmação de que a ciência das mãos do marido equiparava-se à dos aparelhos dos tempos modernos. Era uma produção em pequena escala, mas nas alturas de maior labor “até a balança parecia de prata”.