O resultado é um presunto de "grande intensidade de sabor", que se degusta lentamente. "Não é para matar fome, é para mastigar, mastigar...", diz António Baena, "quem tem fome come cozido". É Mariano quem corta umas fatias para provarmos, translúcidas como devem ser. Estão marmóreas e brilhantes da gordura - e isso é bom.
Santiago Maior
O pão nosso de cada dia
A buzina continua a avisar: o pão está na rua. D. Gracinda, que conduz a carrinha branca, prolonga o trabalho começado ainda de madrugada pelo marido e pelo filho, na padaria Manuel Marat Rocha. Na Aldeia da Venda (38.546170, -7.425109), em Santiago Maior, tem hora certa de passagem e fá-lo há mais de 20 anos, antes trabalhava no campo; o marido já era padeiro quando namoravam - "E o nosso filho tem 40 anos".
Não há venda ao balcão, é sempre assim, de porta em porta. Vende "pão padeiro" e "pão caseiro", este apenas à segunda-feira. O primeiro é "mais fofinho", o segundo "mais duro"; o primeiro é "mais fino", o segundo "mais resistente". D. Bertília, D. Adília, D. Catarina... - vozes diferentes para explicar o que distingue o pão alentejano como é feito aqui, na aldeia do concelho do Alandroal, onde cada lugar tem pelo menos duas padarias. A diferença está no fermento, diz D. Gracinda, o pão padeiro tem mais fermento do que o caseiro - é para comer "ao natural".
D. Isabel cozeu-o em casa durante muitos anos. "Éramos sete em casa, ficava muito barato. Agora não", conta. "O nosso era mais caseiro, não levava fermento inglês. Era mais resistente à água", explica - era o "pão de migar", que é como quem diz, para sopas, açordas... O forno continua lá, às vezes ainda coze. "Antes todos faziam", recorda D. Catarina, profundos olhos azuis. "Aqui na rua ainda há dois ou três fornos antigos. Mas quase ninguém os usa."
Dois papos secos e dois de quilo, "mais estreitos que eles agora não querem pão com muito miolo", pede D. Palmira. "Eles" são os filhos e os netos - "a juventude já não come pão, diz que engorda", havemos de ouvir muitas vezes. A velha geração, contudo, não passa sem ele. "Como até pão com pão. Não sei comer nada sem pão", diz D. Mariana, "até fruta". "Seja arroz, batata, começa-se com o pão", confirma D. Arminda.
"Quando havia fome, era o básico", afirma Catarina Grilo. Sabe do que fala porque começou a trabalhar na padaria dos sogros quando casou, com 25 anos, e já vai a caminho dos 80. "Era a comida de pobre", conta, "e as pessoas até tinham vergonha de ir à padaria". Afinal, era suposto todos fazerem pão em casa e à padaria, a Calisto (tem mais de cem anos e está na família há 70, calcula), iam "às escondidas". Na altura do sogro, recorda, cozia-se três vezes por dia: "Nem nos deitávamos, dormíamos em cima da lenha, com sacos de farinha."
É a filha, Francisca Calisto, quem agora faz grande parte do trabalho. "Comecei há pouco tempo, por acaso." A vida trocou-lhe as voltas, mas não lhe tirou o sorriso aberto. Vivia em Setúbal, voltou, arranjou trabalho em Évora e ajudava no pão; empregou-se na terra e continuou a fazer pão. Agora está desempregada e a padaria é tudo que tem. Mas não é escrava. "Quando era a minha mãe e a minha tia não havia fim-de-semana nem feriados." Já há: são quatro cozeduras semanais - à segunda, quarta e duas à sexta-feira, uma de manhã e outra à tarde, o dia em que sai mais pão, "cerca de 200, todos de quilo".