"Sintra é um belo lugar para morrer". Glauber Rocha, cineasta brasileiro, acabou por não morrer em Sintra, mas lá viveu os seus últimos dias. "Aqui é bonito. Escrevo diante de uma panavisão sobre o Atlântico camoniano e sebastianista do alto de uma montanha antes habitada por Byron numa linda casa onde viveu Ferreira de Castro...".
Se num dia de Verão um viajante chega a Sintra com estas ideias românticas na cabeça, a realidade pode encarregar-se de as desfazer (deparamo-nos com uma espécie de parque de diversões com lotação esgotada) se não acreditarmos que, mais cedo ou mais tarde, Sintra vai fazer o que sempre faz: surpreender-nos irremediavelmente. Nós insistimos, para desvendar o mistério que horas antes víamos encoberto pelas famosas brumas, que, insidiosas, jogam às escondidas revelando apenas pequenas porções do glorious eden de Byron.
A vila adivinha-se, então, entre as neblinas, enquanto percorremos os caminhos em volta - aldeias, campos, aldeias, o outro rosto desta zona que foi refúgio da nobreza; aproximamo-nos da costa e novamente um manto de nevoeiro "aqui onde a terra acaba e o mar começa", escreveu Camões. Estamos no Cabo da Roca, o ponto mais ocidental da Europa continental e de repente voltámos ao primeiro dia da viagem. Pode ser uma coincidência notável ou uma banalidade - para nós foi uma surpresa: dois cabos, duas sessões fotográficas de noivos.
Do mar
Mas comecemos por aquele dia inicial, em que as cegonhas descansam nos postes de electricidade. A Comporta está deserta - vive-se nas praias para lá das dunas. Na Carrasqueira o sol derrama inclemente sobre o cais palafítico, um dédalo de passadiços periclitantes que, sobre estacas, conquista os sapais do Sado. Para trás ficaram alguns palheiros e o largo com relva com o nicho da Nossa Senhora dos Navegantes, inaugurado este ano. "Fui eu e a minha cunhada que o fizemos", conta Maria de Lurdes Carvalho, a pintar o Carvalhinho, o barco que é o ganha-pão dela e do marido - quando o tempo o permite; quando não, é a batata-doce que os ocupa. Sempre ela e o marido: "Aqui na aldeia anda tudo atrás do marido", diz entre risos. Conhece a rotina, ou não fosse ela filha de pescador - "apenas de amêijoas e ostras"; "eu sou tuti-frutti".
Maria de Lurdes está habituada às camionetas que despejam visitantes nos meses de Verão. Vêm percorrer as centenas de metros de estrados que partem de um "tronco" principal e seguem por "ramos", onde ancoram os barcos. "Vai até lá ao fundo", aponta com as mãos pintada de azul. Lá ao fundo passa para uma ilhota, entre barcos, redes cujas bóias parecem cogumelos na água e casinhas de madeira que são arrecadações. "Já fomos 60 barcos. Agora talvez 20. Os antigos estão a reformar-se, a morrer... Os novos não estão para isto...". Que o diga Cesário Matias, que acaba por sair aos caranguejos sem o filho, depois de discussão. Já teve mais barcos, dois semi-rígidos que faziam passeios para ver golfinhos no Sado - ainda não desistiu de voltar.
Há uma pequena baía aqui ao lado, onde uns poucos fazem praia. Mas o habitual é descer a costa, até Sines, diz Maria de Lurdes. Ela, de rosto tisnado, não gosta de praia: "A minha vida é sempre dentro de água." Em Sesimbra, as praias e a pesca andam lado a lado, mas não dão as mãos. Encontram-se nas mesas dos restaurantes que povoam as ruelas íngremes da vila e a avenida que se estende junto ao mar, dividida pela Fortaleza de Santiago - à porta, arcas mostram o peixe à espera de ser cozinhado, nas brasas, sobretudo. O castelo está escondido quando visto cá de baixo, das praias da Califórnia e do Ouro, que partilham a mesma faixa de areia e estão a abarrotar. Parece-nos impossível circular entre toalhas e guarda-sóis com vista para os insufláveis no mar. O movimento só abranda na altura do jantar, para depois as ruas começarem novamente a encher-se, no típico ritmo balnear.