Lembram-se da cena do filme Ratatouille em que o implacável e austero crítico gastronómico Anton Ego prova uma garfada de um prato de ratatouille e, de repente, todo o rosto se transforma, invadido por uma expressão quase doce, enquanto é transportado de volta para a infância e os pratos de sabores simples que a mãe lhe preparava?
Era impossível não nos lembrarmos desse momento na cozinha do Vila Joya, no sábado passado, penúltimo dos seis dias do festival gastronómico Tributo a Claudia organizado pelo hotel algarvio. A cozinha estava cheia de chefs portugueses distinguidos com estrelas Michelin a prepararem os respectivos pratos. A todos tinha sido pedido o mesmo: que fizessem algo que lhes recordasse a infância. Seriam eles capazes de nos fazer viajar no tempo para algum lugar da nossa infância?
José Avillez, Belcanto
Cozido à portuguesa
O cozido era um prato de referência em casa dos avós, a Quinta de São José da Bicuda, em Cascais, ainda antes de ele nascer. “Todos os domingos o meu avô fazia um cozido aberto a quem quisesse vir. Chegavam a ser 60 ou 70 pessoas”, conta Avillez. Neste caso, tem “um centímetro quadrado de carne” (papada de porco) e todo o sabor está no caldo. Faz parte da carta do Belcanto, mas no Vila Joya, entre 13 outros, o desafio era ainda maior: “Transportar as pessoas para a minha infância, que provavelmente é também a de muitas delas, em apenas duas colheradas.”
Leonel Pereira, São Gabriel
Açorda de gambas
Quando era criança, Leonel Pereira vivia no Algarve interior, onde o prato mais comum, “aquele que toda a gente sabia fazer”, era a açorda. “Faz-me pensar nos meus avós, que já cá não estão, e que comiam a açorda mais simples que há, só com um ovo.” Ele apanhou uma época de maior abundância. “Já se punha um bocadinho de peixe ou camarão.” Na adaptação que aqui fez (usando carabineiro), teve “o cuidado de partir dessa simplicidade” e de “garantir que está lá tudo”. Sente que este “é um jantar de emoções, porque o que nos estão a pedir é um bocadinho de nós.”
Henrique Leis, Henrique Leis
Pombo, musseline de xerém algarvio, suspiro de morcela de Monchique
Brasileiro da Amazónia, há 26 anos em Portugal, Henrique Leis não esqueceu as origens: “Na minha terra criava a caçava pombos e ao domingo a minha irmã cozinhava pombo.” Daí que tenha escolhido esta carne para base do seu prato. Mas foi também buscar o xerém algarvio, lembrando-se que no Brasil existe igualmente um xerém mas “de arroz” e no qual usam “caldo de piranha, um peixe delicioso”. Fez ainda um suspiro de morcela de Monchique e amêijoas com crumble de morcela, misturando a carne e o marisco, tal como no Brasil o pombo convivia com o caldo de piranha.
Pedro Lemos, Pedro Lemos
Salmonete, choco, alcaparras
“Para mim foi muito claro”, conta. “Pensei no lado materno, transmontano, e usei as alcaparras por causa das azeitonas, já que estamos na altura da apanha delas.” Depois pensou na comida de tacho e de conforto e do lado paterno, ligado ao negócio do peixe, foi buscar a ideia do choco braseado e do salmonete com o molho do assado no tacho. Procurou os sabores da “azeitona muito verde” e “o lado iodado do salmonete”. No final, a ideia principal é a de que se pode extrair o sabor das coisas mais simples como os ossos ou as espinhas.