Fugas - Viagens

  • Sousa Ribeiro
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Colômbia: Na rota do mundo mágico de García Márquez

"A primeira anotação foi feita com a viúva de Nazaret. Cinquenta anos mais tarde, quando Fermina Daza ficou livre da sua sentença sacramental, tinha uns vinte e cinco cadernos com seiscentos e vinte e dois registos de amores continuados, à parte as incontáveis aventuras fugazes que não mereceram nem um apontamento caridoso. (...) A viúva de Nazaret nunca faltou aos encontros ocasionais com Florentino Ariza (...) Convenceu-a a deixar-se ver enquanto faziam amor, a mudar a posição convencional do missionário pela da bicicleta de mar, ou do frango assado na grelha, ou do anjo esquartejado."

As mulheres, pelo menos algumas, ficavam gratas àquele homem por quem ninguém dava nada em matéria do coração, como se pode ver em O amor nos tempos da cólera.

-Adoro-te porque fizeste de mim uma puta.

Na esquina da La Tablada com a Praça Fernandez de Madrid, Keny sorri do alto do andaime quando Glenys Barrios, já sem vontade de me difamar, lhe atira: -Keny, vais para Portugal. E sem pagar nada!

O pintor acena e deixa-se fotografar outra vez. Na praça, bem no meio, há um poço, polícias que se misturam com o povo e bebem tintos que fumegam em copo de plástico.

O trintanário projecta-se contra a parede púrpura do antigo Convento de Santa Clara, hoje transformado em hotel e presente em diferentes obras de Gabo.

"Porém, à uma da tarde, estava tudo resolvido e só faltava a sobremesa, encomendada às freiras do Convento de Santa Clara, que se tinham comprometido a mandá-la até às onze."

A trabalhar na loja em frente há cinco meses, Liliana Marin vem de longe para conhecer o bairro de San Diego de perto. "É uma das zonas com mais identidade. O hotel tem um papagaio muito colorido que atrai as crianças das redondezas. E como tem alguns restaurantes da moda, a praceta enche-se de vida à noite."

Quando se olha a primeira vez, sem ver e sem sentir, ninguém suspeita que a Praça Fernandez de Madrid possa ter a ver com o Parque dos Evangelhos de O amor nos tempos da cólera. Era aqui, muito provavelmente, que Fermina Daza tinha a sua casa.

"E mais ainda quando Florentino Ariza persistiu em evocar as tardes de versos melancólicos no Parque dos Evangelhos, os esconderijos das cartas no caminho da escola, as aulas de bordado sob as amendoeiras."

-Ofereço-lhes queijo, laranja, ananás, melão - apregoa ao longo da Cochera del Hobo, há mais de 40 anos, a negra Maria Viñalma.

Para tudo tem resposta:

-São verduras verdes!

Maria Viñalma continua a apregoar como se tivesse parado no tempo. Ela e a cidade. A partir daqui, é um passo até às Bovedas. Ao longo daqueles arcos, pintados de ocre, Gabo viveu na fronteira da decadência, dividido entre a esperança de ser jornalista e a angústia de não ser ninguém, como admite nas memórias.

"Senti-me tão mergulhado num pântano que a minha única diversão era amanhecer a cantar com os bêbados em Las Bóvedas das muralhas, que tinham sido bordéis de soldados durante a Colónia e mais tarde uma sinistra prisão política."

A noite encontra-me no renovado bairro, antes de má memória, de Getsemani, um dos mais genuínos e com mais identidade da cidade e o único que Gabo trata pelo nome em O amor nos tempos da cólera. Vagueio ao longo da Rua da Media Luna, na direcção da minha pensão, e ouço um murmúrio que não é mais do que um convite:

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