Fugas - Viagens

  • Sousa Ribeiro
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Colômbia: Na rota do mundo mágico de García Márquez

"A Rua dos Turcos, enriquecida com os luminosos armazéns dos ultramarinos que deixaram a perder de vista os velhos bazares de cores berrantes, transbordava nas noites de sábado com multidões de aventureiros."

Sempre com aquela laranja que enche o céu a queimar sem dó nem piedade, sonho que, em Aracataca, as pessoas sonham, que a indolência daqueles que estão sentados nos Quatro Caminhos, à sombra das árvores da Ponte de los Varados, tudo não é mais do que o resultado de um sonho. O sonho de que o comboio nunca deixou de apitar e de que todos os dias continuam a chegar, por volta do meio-dia, os forasteiros. O sonho de que aquele pesadelo nunca existiu, na praceta junto à estação.

"Fora ali, segundo me precisou a minha mãe naquele dia, que o exército matara em 1928 um número nunca determinado de jornaleiros da banana. Eu conhecia o episódio como se o tivesse vivido, depois de o ter ouvido contado e mil vezes repetido pelo meu avô desde que tive memória: o militar lendo o decreto pelo qual os peões em greve foram declarados um bando de malfeitores."

Aracataca vivia agora nas trevas, na mais profunda depressão. E nunca mais se recompôs. No sonho, mergulhava uma vez mais nas memórias de Gabo. "Em Aracataca, nunca se passou nada, nem está a passar, nem passará nunca, este é um povo feliz." Até Mário Vargas Llosa, o escritor peruano que acaba de conquistar o Nobel, entrava naqueles resíduos de fantasia.

"À primeira vista, dir-se-ia que aqui não acontece nada (...), que a principal ocupação de toda a gente é dormir a sesta (...) Grande mentira! Pois, sonhar, fantasiar, inventar. A mais ilustre e mais antiga das tarefas humanas: imaginar, partindo de este mundo, um outro, mais original, mais belo, mais perfeito e, mediante um movimento da sensibilidade e da mente, mudar-se para ali para viver melhor."

Sinto que o sonho chega ao fim. De pouco mais me consigo recordar. Na rua, há um menino que inventa, com um pau bizarro, uma pistola e simula que faz pontaria. Também ele idealiza outro mundo, o mundo dos brinquedos que não tem.

Ender David sabe que naquela terra nasceu alguém importante mas acredita que já morreu. Abano com a cabeça, em sinal negativo.

-Entonces no sé quien es!

Pela estrada de terra batida, a caminho do centro, aquele riquexó com o número 112 e a caricatura da cara de Gabo, com os nomes de Aracataca e Macondo na parte superior da cobertura de plástico, a ninguém passa despercebido. Hector Pulgar, de 55 anos, percorre há seis estas ruas cheias de pó e também ele, partindo deste mundo, inventa um melhor, em que pode comprar mais livros do escritor que o preenche, mesmo quando chega a casa, ao fim de um dia de trabalho, quase de mãos vazias.

No sonho, só há tempo para beber uma cerveja Aguila, sin igual y siempre igual, na Rebaja Granero, de onde, de pé e ao balcão de madeira, posso avistar a buseta que me irá levar de volta a Santa Marta.

Agora que mergulhei na vida de Gabo, sinto vontade de ligar e ouvir, lá do outro lado, muito longe, a voz daquele amigo que a esta hora estará a deixar pousar o olhar num livro, numa fotografi a de um escritor, numa capa, apenas para lhe anunciar que me preparo para deixar esta terra, esta terra que foi de Gabriel Garcia Marquez, um homem de terra nenhuma, que viveu sem fronteiras. "Macondo não é um lugar mas um estado de ânimo, que permite a cada um ver o que quer, e vê-lo como quer."

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