Fugas - Viagens

Antony Njuguna/Reuters

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De Nairobi a Ngorongoro num camião chamado Cristina

Uma hiena - talvez uma daquelas que não se calaram durante a noite anterior -, observa-nos ao nascer do dia. Provavelmente tenta perceber quem eram aqueles seres que estiveram a fazer barulho, à volta de uma fogueira, apesar da chuva. Olha para nós, sentada, e de orelhas atentas, a cerca de 50 metros do acampamento. A aparência é a de um simpático cachorro, mas convém lembrar que a hiena tem a mandíbula mais poderosa entre os mamíferos.

Agora, após a saída da Reserva Nacional Masai Mara, o caminho é a subir e as "estradas" estão enlameadas. Carmen já previa difi culdades de progressão, mas a realidade encarregou-se de comprovar que uma viagem deste género é, de facto, imprevisível. Surge uma cova que é preciso tapar e todos saem do camião para apanhar pedras grandes. Uma espécie de aperitivo.

Noutra zona, a solução é passar num terreno paralelo à estrada, com os ocupantes do camião a caminharem durante cerca de 800 metros para facilitar a marcha do veículo. Talvez por me ver de bloco de notas na mão, Noah, um ancião, pergunta-me se tenho uma Bíblia. Digo-lhe que sim, mas que não está comigo. "Devia ter porque Deus está em todo o lado", aconselha.

Os contratempos de uns são a fortuna de outros e Damil, o dono dos terrenos por onde o camião passou, recebeu, em xelins, o equivalente a cerca de 20 euros, por deixar passar a viatura pesada na sua propriedade. E nós nem fomos os primeiros clientes do dia. O terreno é tão mau que o camião já não se limita a sacudir os seus ocupantes. Por vezes mais parece um navio em mar revolto, que ameaça tombar. É ainda frequentemente vergastado pelos ramos das árvores, obrigando os passageiros a "entrincheirarem-se".

A empresa espanhola que trabalha com a portuguesa Agência Abreu, que por sua vez comercializa esta viagem, tem 16 camiões como o Cristina. Mas Óscar menciona que não os usam, por exemplo, na Etiópia, porque lá os caminhos são bem piores e desempenham a sua actividade apenas com jipes.

Cristina atolada

Entretanto, acontece o que já se temia: o camião atola numa subida, junto a uma povoação chamada Lol Gorian e a cerca de 50 quilómetros da fronteira com a Tanzânia. Tentamos por todos os meios desbloqueá-lo, mas o chassis já bate no solo e as rodas traseiras (de tracção) estão bem enterradas na lama. Ainda por cima, as várias caixas de arrumos montadas lateralmente por debaixo da carroçaria funcionam como uma espécie de travão. A lama abunda e nem mesmo a ajuda de vários locais com pás e enxadas é suficiente para recolocar o camião em marcha.

Chama-se um tractor e, enquanto esperamos, improvisamos o almoço à sombra de uma árvore. Atum de cebolada enlatado, de origem tailandesa, com tomate, pepino, pimento e mais cebola acabada de cortar. Após a refeição, chega o tractor, uma oferta italiana ao Projecto de Desenvolvimento das Nações Unidas. Com um gancho forte a puxar o camião, as rodas do tractor patinam, mas o pesado nem se mexe.

Apesar de não trabalhar para nenhuma entidade pública queniana, John O'Singi, de 46 anos, coloca ramos de árvore no que resta de caminho paralelo ao camião para que outros veículos possam circular. É agricultor e produz cerca de 20 sacos de milho por ano. "Deus vai ajudar-nos", diz aos passageiros apeados. Tem cinco filhos e não fuma nem bebe bebidas alcoólicas por motivos religiosos. Frequenta a igreja de Lol Gorian duas vezes por semana. Pergunto-lhe se já foi ao estrangeiro, talvez por ele ter um boné do Inter de Milão na cabeça. "Não, mas se Deus quiser que vá, estarei pronto para ir", responde. Quer saber o meu nome e número de telefone e, depois de lhos indicar, dá-me o seu número e diz-me que somos amigos.

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