Estamos para lá da Hungria, da Eslováquia, da Polónia e até da ameaça de misséis em Kaliningrado nesta noite de Verão em que não há uma mesa vaga na esplanada do Centro de Arte Contemporânea de Vílnius (CAC). O voo fez escala em Frankfurt, talvez tenhamos sobrevoado uma esquina da Bielorússia, ou uma praia do Báltico, à direita o antigo palácio do KGB, à esquerda a praça que um Lenine gigante vigiou durante quase 40 anos, mas apesar de tudo o que nos empurra para Leste (a começar por uma imagem mental do mapa da Europa que ainda é do tempo da Guerra Fria), os copos de vinho francês e os sacos de pano suecos respectivamente em cima e por baixo das mesas da esplanada do CAC apontam convictamente para outro lugar, um ponto no centro do centro da Europa.
Há mais de duas décadas que Vílnius é esse ponto. Em 1989 - um ano antes de a Lituânia se ter desvinculado da Rússia, o país que a vampirizou quase ininterruptamente desde meados do século XVII -, um investigador do Instituto Geográfico Nacional francês, Jean-Georges Affholder, declarou que o centro da Europa ficava ali, a menos de 16 quilómetros de distância da capital: latitude 54º 54º, longitude 25º 19º. O anúncio não mudou a maneira como a Europa olha para a Lituânia, mas mudou a maneira como a Lituânia olha para a Europa - e a maneira como Vílnius se senta à esplanada do CAC numa noite de Verão para afirmar que a Lituânia não é só o país do pão escuro e dos Invernos intermináveis, mas também o ponto equidistante entre um copo de vinho francês e uma sauna russa.
Do centro do centro de Vílnius nesta noite luminosa, avista-se uma cidade que janta na esplanada do CAC e dança no bar do Instituto Francês (instalado na casa onde Stendhal se alojou quando por ali passou com as tropas napoleónicas, que acabavam de bater em retirada da Rússia), mas que continua tão longe de Paris e de Moscovo como de perder a alma. Apesar de todo o dinheiro investido no restauro - impecável - das extraordinárias residências barrocas do centro histórico, um restauro que devolveu à cidade o vermelho vivo dos telhados e o pastel fantasioso das fachadas, liquidados por décadas de agressões e negligência soviética, Vílnius ainda é a pequena cidade quase provinciana, ainda muito próxima da agricultura e da terra, onde as mulheres ficam a rezar de joelhos nas escadas de capelas minúsculas, indiferentes ao vaivém dos turistas junto à Porta da Aurora, e onde os últimos judeus varrem a entrada da Sinagoga Coral depois do pouco concorrido serviço da manhã.
Por trás do papel de parede lustroso que cobre o centro histórico de Vílnius, nos pátios que se deixam desvendar pelos portões entreabertos, a vida lituana continua. Apesar da gentrificação de algumas zonas, e em particular do antigo gueto onde o metro quadrado atingiu preços inimagináveis há alguns anos, é aqui que vivem 10 por cento dos habitantes da cidade, a poucos minutos da universidade, da enorme catedral neoclássica e da atmosfera bastante beat de Uzupis, o bairro de artistas que em 1997 declarou a independência e que desde então tem levado a sério esse teatro - tem o seu próprio presidente (cuja residência oficial é o café lendário que fica logo a seguir à ponte, mesmo em cima do rio Vinele), a sua própria Constituição de 41 pontos, xerife, hino, bandeira e 16 representações diplomáticas no estrangeiro. O restauro está cada vez mais próximo, mas ainda não chegou a este bairro onde continuam visíveis as cicatrizes da Segunda Guerra Mundial e da indiferença comunista - há grandes edifícios abandonados onde os artistas se vão instalando, e uma verdadeira vida de pequena cidade, entre lojas com tabuletas dos anos 1950 e casas com velhas cortinas de renda queimada pelo sol de Verão. Parece que se está no campo, e está - dez minutos dentro de um autocarro e estamos no país da floresta e dos lagos.