Antes de percorrermos a bem conservada Kasbah, um bairro amuralhado do século XII, com vista panorâmica sobre a cidade, ou de nos perdermos pelo souk (mercado), onde nos haverão de explicar os benefícios das especiarias, há dois sítios que não podem deixar de ser visitados. O primeiro, o cabo Espartel, do qual se vislumbra a costa espanhola por entre a bruma; o segundo, as míticas Grutas de Hércules.
Em qualquer um destes sítios há, naturalmente, estaminés improvisados cheios de souvenirs, o que lhes retira um pouco da sua magia. E, no cabo Espartel, junto ao ponto onde o nervo do Atlântico se deixa definhar ante a quietude do Mediterrâneo, a atenção é roubada por dois rapazes que tentam fazer negócio com os dois pequenos burros que os acompanham: uma fotografia em troco de alguns dirham.
Já pelo interior das grutas, que mais parecem umas quaisquer galerias comerciais urbanas, há comerciantes com ar verdadeiramente oficial. Mas vale a pena abstrairmo-nos das pedras preciosas, da cerâmica, dos bules, dos imãs para o frigorífico. Enfim, de toda a quinquilharia e marroquinaria. E deixarmo-nos levar. Primeiro, pela beleza. Sobretudo se se visitar a gruta ao pôr-do-sol e se se tiver a sorte de a maré estar baixa. Depois, para observar o recorte quase perfeito de um mapa de África de pernas para o ar. Por fim, para tentar compreender a lenda que diz que foi o próprio Hércules que esculpiu estas grutas para descansar após cumpridos os 12 trabalhos e depois de ter dividido o estreito de Gibraltar em dois, formando assim dois continentes.
Alfama em Marrocos
Depois de uma incursão pelos arredores da cidade, a proposta é, claro, uma imersão na zona histórica. É então que se volta a saborear um pouco de Lisboa. É que, seja na amistosa medina de Tânger, na completamente labiríntica e claustrofóbica medina de Fez ou na agressiva e ao mesmo tempo irresistível medina de Marraquexe, há sempre alguma coisa nestas que me coloca no centro de Alfama. Pelo facto de o nome do bairro lisboeta derivar do árabe, mas também pelas ruas estreitas, pelas escadinhas íngremes, pela forma como os ambientes domésticos se estendem até à rua. Quer na área comercial, onde os turistas (e respectivo dinheiro) são muito bem-vindos, quer na residencial, pela qual, desde que haja alguma orientação ou guia, se pode entrar um bocadinho mais na intimidade dos residentes. São mulheres à conversa de porta para porta, rapazes a jogar à bola, gente a regressar do trabalho ou a caminho das suas orações após soar aquele chamamento que, desde o primeiro dia, passou a fazer parte do nosso quotidiano. Cinco vezes ao dia, os altifalantes das mesquitas entoam "Allah hu Akbar" (i.e., "Deus é grande") e, qual formigas em carreiro, vêem-se centenas de pessoas a recolherem-se em oração.
Mas nem todos. Ainda em Tânger, depois de passarmos pelas bancas de peixe (sempre muito frequentadas por gatos que vão saboreando as entranhas que salpicam o chão), por lojas cheias de quinquilharia ou por vendedores ambulantes que nos aconselham a ignorar, acabamos numa ervanária, a El Kenfagui, onde quem nos recebe, com um português carregadinho de erres e de "ches", opta por continuar a trabalhar e deixar a oração para mais tarde ("O trabalho é uma forma de rezar", dir-nos-ia mais tarde Idriss, o nosso guia em Fez).