Vamos caminhando sempre com atenção. Pela medina de Fez o trânsito motorizado está proibido. Mas isso não significa que em qualquer altura não se possa ser atropelado: por um burro, por uma mula (ambos devidamente apetrechados com cascos de borracha para não escorregarem) ou por um carrinho de mão. E não é exagero. Não só estes veículos têm prioridade, como circulam tão rápido e por ruas tão estreitas, que por vezes somos obrigados a colar o corpo à parede para os deixar passar (e, ainda assim, pode sempre haver um pé que não escape). É nestas ruas estreitinhas que nos vamos cruzando com o passado de Marrocos, mas sobretudo com a fé que marca tão firmemente o presente. Seja numa antiga madraça (escola), hoje convertida em mesquita e onde Idriss aproveita para explicar como a religião influencia a sua vida e dos seus conterrâneos, à porta do mausoléu de Moulay Idriss Zawiya (a entrada é exclusiva a muçulmanos) ou, também sem passar da entrada, na Universidade Quaraouiyine, considerada pelo Livro de Recordes Guinness como a universidade mais antiga do mundo: foi fundada em 859 d.C.
Depois de se sobreviver às claustrofóbicas ruelas, o céu parece abrir-se sobre nós numa altura em que o sol perdeu a vergonha e o nevoeiro matinal já se recolheu. As edificações afastam-se e no seu intervalo descobrem-se pequenos largos. Num, multiplicam-se as ourivesarias (de onde veio uma regateada mão de Fátima, a filha do profeta); noutro, o trabalho com cobre, executado à sombra de um gigantesco plátano, convida a um momento de pausa. As batidas no cobre, que é usado em panelas de diferentes tamanhos, em pratos de distintas grossuras, lembram uma ritmada e afinada orquestra de percussão. E não tarda que muita gente vá batendo o pé ou abanando a cabeça. A vontade é de ficar ali. Ou então de voltar. Mas nada é fácil neste rendilhado de ruas. E o melhor é apressarmo-nos antes que a fome aperte. É que se há coisa que é imperdível em Fez são os curtumes, o local onde se tratam as peles - de vaca, de cabra, de camelo... - que serão transformadas em malas, carteiras, bolsinhas e, claro, babouches, os chinelos pontiagudos que calçam a maioria dos pés marroquinos. Mas apenas de estômago vazio.
A entrada para a La Belle Vue de la Tannerie faz-se numa esquina. E, assim que entramos, recebemos um raminho de hortelã-pimenta. Não se trata de nenhuma cortesia, mas de uma necessidade que compreendemos quando chegamos ao penúltimo andar e olhamos para baixo. Dezenas de homens mexem e remexem nos líquidos que enchem aquilo que nos parecem favos duma vasta colmeia esculpida na pedra. De hortelã-pimenta enfiada no nariz - que, não vale a pena enganos, apenas disfarça ligeiramente o odor nauseabundo -, ouve-se as explicações de como, primeiro, as peles são lavadas, depois suavizadas com fezes de pombo (a presença de um pombal mesmo ali ao lado confirma o ingrediente) e, por fim, caiadas ou tingidas.
À volta desta fábrica artesanal ao ar livre, os telhados vão recebendo turistas, todos de hortelã-pimenta a tentar enganar o olfacto. Mas nem assim os homens se distraem da labuta. Alguns recebem à jorna; outros fazem parte de uma cadeia familiar que só termina numa qualquer banca do souk e que inclui o fabrico dos vários itens. Há ainda membros que, aproveitando a curiosidade turística, ganham os seus dirham levando turistas à zona dos curtumes. Era o que um rapaz pretendia fazer pela tarde, quando regressámos já sem guia nem destino e até com uma ligeira vontade de nos perdermos. Mas, embora seja um cenário impressionante, visitar os curtumes duas vezes no mesmo dia poderá ser mais masoquismo que outra coisa.