Fugas - Viagens

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Guatemala: A história singular dos garifuna numa viagem pela 'terra de Deus'

- Queres mesmo aprender a contar de um até dez em garifuna?

- Se não te aborrecer…

- Para mim é um prazer. E, de mais a mais, ainda temos tempo até chegar a Livingston. Tempo suficiente para aprenderes outras coisas. Sabias que na língua garifuna há uma divisão sexual, que certas palavras e expressões são exclusivas de homens e outras de mulheres?

Uma sonora gargalhada ecoa no céu que começa a despir-se.

- Dentro de pouco tempo, vais ver o barana e, caminhando através de um üma, não tardarás a deitar-te sobre a sagoun ainda quente. Vamos aos números?

- Não sem antes me explicares o que quer dizer barana, üma e sagoun, pode ser?

Ela, vendo-me confuso, sorri.

- É fácil, na nossa língua. O que quero dizer é que não falta muito para veres o mar, caminhar ao longo de um trilho e descansar numa praia de areia fina e quente. Livingston tem tudo isso.

Nada me faz duvidar.


O advento de uma sociedade

- Um, aban.

Eu, na minha coerência granítica, remeto o um para o início. A história dos garifuna rompe a aurora no século XVII, na Ilha de São Vicente, território sob a jurisprudência da actual Belize que, devido à sua topografia e inexistência de metais preciosos, nunca seduziu os europeus que, já um século antes, haviam conquistado a América do Sul e a América Central. São Vicente era então habitada pelos kalinago, provenientes do Delta de Orinoco, cujas origens abandonaram atraídos pela oferta piscatória nas Pequenas Antilhas. Não obstante a sua baixa estatura, os homens desta tribo eram robustos e não sentiram grande dificuldade para eliminar os arawak, optando por manter as mulheres para com elas contraírem matrimónio. A união entre os dois grupos resultou numa nova sociedade conhecida por kalipuna, em certos círculos também designados Caribes Amarelos, Caribes Vermelhos e Ameríndios. 

O barco prepara-se para sulcar de novo as águas dóceis do Rio Dulce e eu, sentindo-me observado, planto os olhos na pequena que, com a sua camisola bordeaux, a sua saia azul e uns pés descalços, me fita demoradamente, como se diagnosticasse uma despedida sem regresso naquele momento para mim tão intenso.

- Dois, biama

Em 1635, dois navios espanhóis carregados de escravos provenientes de África (algumas teses defendem a Nigéria, outras o território hoje ocupado pelo Gana), naufragaram nas proximidades da Ilha de São Vicente, alegadamente induzidos em erro pelos kalipuna que, com alguma frequência, davam falsas coordenadas, atraindo as embarcações para as margens do rio, onde lhes saqueavam toda a carga e matavam os membros da tripulação. Ansiosos por estabelecer laços de amizade e evitar a sua compra por parte dos proprietários, os escravos foram acolhidos pelos indígenas e rapidamente adoptaram os seus costumes, dando início a um processo de aculturação que os tempos se encarregaram de exacerbar, com forte impacto na religião, na música, na gastronomia e na língua, uma verdadeira identidade cultural que nunca, ao longo de quase quatro séculos, deixou de ser preservada.

- Ürüwa.

E eu, como aluno disciplinado, registo, três, e repito:

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