Fugas - Viagens

Continuação: página 4 de 8

Guatemala: A história singular dos garifuna numa viagem pela 'terra de Deus'

- Ürüwa.

Shajida Franzua, anuindo, encara-me com uma expressão séria.

- Vê-se que te interessas pela história do povo. Muitos, entre tantos turistas, fitam os garifuna como um objecto. Fico feliz por olhares para lá desse horizonte, por não te limitares a meia dúzia de fotografias, como se estivesses de visita a um jardim zoológico.

Ainda no século XVII, uma drástica mudança ocorre na sociedade vicentina devido ao rápido crescimento geográfico da comunidade negra, motivado pela conquista de Barbados e Santa Lúcia. Recusando-se a aceitar as novas regras impostas pelos colonizadores, os nativos destas duas ilhas reuniram os seus bens e, zarpando em canoas, não tardaram a chegar a São Vicente, aliando-se aos kalipuna. As constantes lutas pelo poder e as disputas territoriais acabaram por provocar uma divisão e, a despeito de kalipuna e garifuna temerem que esse foco de tensão fosse aproveitado pelos europeus, centrando neles a sua atenção, os garifuna, homens altos e corpulentos, não tardaram a forçar a retirada dos kalipuna para a parte mais ocidental da ilha. Quando a notícia sobre os problemas internos entre as duas tribos chegou a França, os franceses optaram por apoiar os kalipuna, instalando-se nas terras ocupadas por estes, enquanto os garifuna, guerreiros bravos e temidos, resistiam a qualquer tentativa de colonização europeia.

- Gádürü é quatro.

O sol abre as suas cortinas e as árvores e a densa vegetação, reflectindo-se na água como num espelho, enchem a moldura que emite sons de pássaros. O lago El Golfete, a meio do percurso entre Rio Dulce e Livingston, era o antigo portal dos caminhos maias, dos conquistadores espanhóis e dos piratas, a curta distância do Mar das Caraíbas. Área protegida desde 1955, é habitada por mais de 350 espécies de pássaros e um número significativo de plantas, animais e insectos raros ou em vias de extinção, um verdadeiro paraíso para entomologistas e etnobotânicos, mas também para o comum dos mortais que aprecia a beleza, a diversidade, a complexidade e a magia deste lugar no meio da selva, tão arrebatador e tão tranquilo.

Os franceses, não obstante algumas tentativas, foram céleres a assimilar que estavam perante uma comunidade praticamente impenetrável e, capitulando, estabeleceram uma relação pacífica com os garifuna, enquanto estes, sentindo-se fortalecidos, assimilaram alguns dos costumes dos europeus: a moeda para trocas comerciais, o gosto pelo vinho e não pelo rum e incorporaram inclusive palavras francesas no seu dialecto.  

- Se reparares, alguns dos números têm fortes semelhanças com o francês. Cinco, seingü, não tanto, mas sisi, seis, não deixa grandes dúvidas, não te parece? E sedü? E widü?

- Mais devagar -, protesto.

- Não tarda, estamos a chegar a Livingston. Já viste aquele mural?

Sigo a trajectória do indicador de Shajida Franzua. Numa rocha escarpada destaca-se um grande número de graffiti. É a La Pintada. Segundo a lenda, a população local deixa aqui a sua marca desde há mais de 300 anos mas ninguém detecta uma pintura anterior à década de 50 do século passado.

--%>