As rotas de 1714
Tal como Portugal, Barcelona vive um Verão atípico, de dias nublados e não raras vezes chuvosos, com a humidade sempre alta. Não é nada que afaste os turistas das praias de Barceloneta, onde massagens, artesanato e até material de contrafacção são oferecidos tão constantemente que há quem opte por um papel à laia de cartaz: “No queremos nada”. Os barceloneses optam por praias um pouco mais afastadas, reservando a Barceloneta para piqueniques noctívagos que podem seguir ou não para os muitos bares que têm um pé na areia. Longe da areia segue a rota do Tricentenário que, contudo, se concentra na Ciutat Vella. Onde também se concentram os turistas.
Se olhamos para o programa das Rotas de 1714, percebemos que as paragens históricas dos feitos dessa época se concentram entre as Ramblas e o Parque da Cidadela, percorrendo os bairros Gótico, Ribera-Born, Santa Caterina y Sant Pere. Isto equivale a um labirinto de ruas e ruelas, num emaranhado onde é fácil perder o rumo, ou não estivéssemos na cidade medieval. É aqui que palácios severos de pedra e enormes portas de madeiras, conventos, igrejas, antigos cemitérios, restos de muralhas nos contam a história de 1714 — unidos a muitos outros que revisitam toda a história de Barcelona.
Desde os tempos romanos, na verdade. O bairro Gótico não é só um parque temático medieval; é o espaço da Barcino romana. E mesmo que não nos apercebamos ela ainda continua visível, mesclando-se com o gótico e até acompanhando adições modernistas, como na irresistível Praça Nova. Aqui, à vista da catedral vemos duas torres que fazem parte do resto da muralha romana (era a porta principal de Barcino) e estão perfeitamente encaixadas no entramado que as rodeiam — inclusive na rosada Casa do Arcediago; do outro lado da praça, o nada consensual edifício do Colégio dos Arquitectos da Catalunha, de 1962,exibe frisos de Picasso, como que desenhados a negro sobre a parede branca. E isto é o que está sempre lá — até 11 de Setembro está também a intervenção Urbanus, uma espécie de parede de madeira feita com cruzes que se repetem em forma tridimensional, que é como o fantasma prolongado do aqueduto romano que por aqui seguia e cujas ruínas estão adossadas à torre.
Seguindo as ruelas por detrás da catedral, mergulhamos em pleno no mundo medieval feito de palácios e igrejas que formam pracetas pétreas onde por momentos parecemos mesmo viajar no tempo. Isto até chegarem mais turistas e até novamente sairmos para a invasão do século XXI e os seus mil e um negócios que florescem por estas ruas. E aqui bem perto temos um lampejo da Barcelona modernista, plasmada na Via Laietana, que, no século XIX, cortou a cidade velha para ligar o emergente Eixample à beira mar. Do lado de lá da Laietana, o Born e Santa Caterina prosseguem no mesmo entramado de vielas, mas pedra gótica dá lugar a mais paredes pintadas, em ocre, azul, amarelo desbotados.
Multiculturalismo com arte
Se a Laietena divide a cidade velha do lado nascente, do lado poente é à Rambla que cabe essa tarefa, separando o bairro Gótico do Raval. Da Praça da Catalunha à estátua de Colombo, as Ramblas, como também é conhecida a avenida que é o passeio público da Barcelona do século XXI (se calhar nome mais apropriado, já que é constituída por uma sucessão ininterrupta de várias ramblas), são a espinha dorsal da Barcelona turística. É, portanto, um desafio para peões não passeantes. Quem está de férias caminha lentamente, atento a tudo: dos edifícios que a margeiam (o Teatro Liceo, o famoso Mercado da Boquería — atenção aos preços —, por exemplo) e às obras de arte que pisam (o famoso mosaico de Miró) aos vendedores que a povoam — há artesanato e recuerdos, há doçaria tradicional e waffles, há esplanadas permanentes e há carteiras falsificadas em fuga constante. Para os barceloneses, este movimento é um pau de dois bicos, mas a cidade parece mais apaziguada com o cerco turístico que dura todo o ano e que no Verão mais parece uma invasão.