Não se pode dizer que Barcelona fervilhe com as celebrações do Tricentenário nem com as pretensões independentistas. Já vimos, noutros momentos, centenas de bandeiras catalãs em janelas e varandas por toda a Barcelona — por estes dias, esses ímpetos parecem estar mais contidos, com uma ou outra espreitando nas fachadas do centro da cidade, e com algumas mais nos bairros mais tradicionais, como a Gracia. O Tricentenário BCN, iniciativa cidadã com apoio do governo para assinalar a data, esse, instalou-se nas ruas, em alguns locais mais ou menos icónicos da cidade, com instalações temporárias por artistas internacionais convidados a reflectirem sobre o seu significado; e foi-se processando ao longo do último ano — as celebrações começaram em 2013 — em colóquios, concertos e até um show cooking de Ferran Adrià. O encerramento será a 24 de Setembro, coincidindo com o final das Festas de la Mercè, a maior festa da cidade, mas a “Diada”, um ano depois da abertura, será um dos pontos altos — o Dia da Catalunha, assinalado desde 1980, quando foi reinstaurado do parlamento catalão, este ano é também o aniversário redondo. O Tricentenário. O 11 de Setembro catalão.
Voltamos ao Born. Voltamos muitas vezes ao Born. No Mamainé, esquina com o Passeig del Born, os cocktails sucedem-se calmamente na esplanada. Dizem que têm os melhores de Barcelona, em especial os mojitos. Gostos não se discutem — é, pelo menos, um dos mais cubanos bares da cidade e é o nome que o revela: “Mama Inés”, pelo pianista e cantor Bola de Nieve, transforma-se num redondo “Mamainé” pelo seu sotaque cubano. Alguns edifícios antes, na direcção da igreja de Santa Maria del Mar, o número 18 do passeio assinala a fronteira entre o Born pré-1714 e o Born pós-1714; alguns edifícios depois, o Mercado do Born guarda o Born pré-1714 que o Born pós-1714 enterrou. Alguns dizem que é Barcelona, e não apenas um bairro (na verdade Ribera-Born), que aqui se reencontra com a sua história. Alguns vêm aqui a síntese de uma Catalunha que continua a querer “viver livre” (viure lliure), o mote para este ano de tricentenário, herdeiro do lema dos lutadores de 1714 “viveremos livres ou morreremos” (viurem lliures o morirem).
No século XVII e início do século XVIII, o Passeig del Born não era um passeio, era uma praça. Uma espécie de plaza mayor barcelonesa, defende o historiador Albert Garcia Espuche no livro La ciudad del Born. Economía y vida cotidiana en Barcelona (Siglos XIV a XVIII). Aqui cruzava-se toda a cidade, ou não fosse este o seu centro mais activo com dinâmicas comerciais, industriais e portuárias pujantes. Até que chega a Guerra da Sucessão de Espanha. A Catalunha, depois de apoiar o rei Bourbon, herdeiro designado do monarca anterior, vê as suas liberdades e autonomias serem restringidas e toma partido do pretendente austríaco que chega a estabelecer a sua corte em Barcelona e garante o respeito pelas liberdades catalãs. Numa guerra de dimensões continentais que pôs em confronto modelos e conceitos políticos distintos, quando as grandes potências chegam a acordo a Catalunha é abandonada à sua sorte: depois de um sítio que durou um ano, a 11 de Setembro de 1714, Barcelona capitula. Fica à mercê de Filipe V, o primeiro da dinastia Bourbon em Espanha que, como bom neto do seu avô, Luís XIV, o rei-sol francês, é absolutista convicto e está determinado a não ter complacência com os catalães. É o final das Constituições e instituições catalãs, direitos seculares: a Catalunha perde autonomia económica, judicial, fiscal, monetária, aduaneira e legislativa; o catalão deixa de ser língua oficial; todas as universidades são encerradas.