Luís Monteiro, empregado de mesa
“Sr. Ramiro, quando é que me leva para trabalhar consigo que eu tenho tanto desejo de trabalhar naquela cervejaria?”, recorda-se Luís de tantas vezes perguntar ao antigo dono da icónica marisqueira de Lisboa quando este ia tomar o pequeno-almoço à pastelaria onde fazia um part-time. “Foram várias vezes que o importunei até que numa manhã me respondeu: ‘És chato, pá, anda lá falar comigo’”. Hoje Luís Monteiro tem 44 anos anos e conta com mais de 20 a correr aqueles corredores exíguos com travessas de marisco. “No primeiro dia só consegui tirar cafés, estava tão nervoso e agitado, com medo de dar um passo, tal era a algazarra de movimento dentro do balcão”, conta. De 20 pessoas passou a atender quase 800 por dia mas, garante, nada disso o assustou: “Se procurava um paraíso chamado público, encontrei-o aqui”.
Haverá poucas coisas na vida que lhe dão mais prazer do que ajudar um estrangeiro que o olha atabalhoado com o martelo na mão e uma sapateira na outra — “Hey, guy, how this work?”, imita —; ensinar a um cliente o “segredo básico” de misturar as ovas da lagosta com maionese e limão; descobrir que uns carabineiros seriam o remate perfeito para aquela norte-americana, dignos de beijos e abraços no final; ou receber uma camisola do Atlético Mineiro (o seu clube preferido no Brasil) como agradecimento de um casal que ali quis ser atendido por ele por recomendação do filho. “Essa é a melhor gratificação que eu posso receber do público, quando abala e volta outra vez feliz”, conta. “O público é o meu sangue”, remata, o sorriso sereno, o coração na boca. “Aquilo que eu faço aqui é aquilo que eu amo”.
Quando ali começou, recorda, trabalhava-se “muito mesmo”. Hoje trabalha-se “muito, muito, muito”. Na altura, a percentagem de portugueses e estrangeiros era muito semelhante, actualmente a maioria dos clientes vem de fora. Com a crise, muitos saíram do país; com a fama internacional, muitos chegam já com aquela referência. “Os orientais, por exemplo, já trazem uma lista feita por certa revista ou livro e dizem logo que querem comer isto ou aquilo, sem medo de arriscar porque a descrição era boa.” E depois de a cervejaria ter surgido no episódio lisboeta da série norte-americana No Reservations, vem “um exército de seguidores que querem comer exactamente o mesmo que ele [Anthony Bourdain, o apresentador do programa]”.
Sentado ao lado, Pedro Gonçalves, actual gerente, ainda se lembra quando um estrangeiro pediu uma “beer, small” e por duas vezes lhe entregaram uma imperial e um Sumol. “Ainda houve este grande embate, pelo qual quase toda a equipa passou, que é a chegada em força do turista”, recorda. No outro lado da mesa está Rui Alves, chefe de cozinha, que todos os dias regista na agenda estas histórias e gaffes, que “um dia serão um livro”. Está lá a tradução dos percebes para “understands”, a santola morta a boiar no fundo do aquário ou o prego sem miolo. Vão folheando o caderno e rindo. “Isto é uma família”, garantem.
Para Luís, o senhor Ramiro (falecido em 2009) era até mesmo “um segundo pai”. “Muitas das vezes, na minha formação, ele chegava ao pé de mim e dava-me uma chapada no pescoço e sabia-me muito bem, era como se fosse um beijo, a maneira de ele me transmitir a amizade dele”, conta com a voz embargada e o olhar colado no papel que vai enrolando nervosamente. “‘Estás a brincar comigo, passei-te a mão no pescoço, estás-me a dizer que te bati?’, dizia-me ele e eu sentia aquilo com uma gratidão.” “Foram muitas vezes e foram poucas para aquilo que lhe devo.”