Não haverá palavra, e suas declinações, mais associada ao carácter andaluz do que paixão. Andaluzia rima com paixão, não importa que não literalmente. Tudo parece nascer desse duende que Garcia Lorca tanto invocou, esse sobressalto de inspiração, que tanto pode estar encravado nas montanhas ou estendido nas planícies, pode surgir sob sol inclemente ou à vista dos touros bravos, pode romper da religião ou soltar-se do flamenco, revelar-se num tapeo e assaltar uma siesta. Há uma espécie de sortilégio nesta encruzilhada de culturas, de tolerância e intransigência, de lutas e convívios, da qual emergiu com um carácter e um modo de vida singulares feitos símbolos de um país que, sabemos, tem pouco de uniforme.
Talvez tenha sido o caldo de culturas que ao longo de milénios aqui deixaram rasto que transformaram a Andaluzia em metonímia de Espanha. Na Andaluzia, gregos, fenícios, cartagineses e romanos uniram-se aos iberos num sincretismo raro, os árabes fizeram daqui a sua terra prometida, os judeus julgaram ter encontrado o final da diáspora, e a poderosa Castela fez-se Espanha muy católica e imperial — é uma espécie de umbigo do país, portanto.
A rota Caminos de Pasión uniu oito municípios (cidades de não mais de 30 mil habitantes) num percurso que revela as idiossincrasias da Andaluzia fora do seu quadrilátero mágico — Sevilha, Córdova, Granada e Málaga. Estamos nas suas órbitas desvendando a história, a paisagem, a arte, a gastronomia e as tradições populares destas cidades de duas caras, uma, popular, caiada de branco imaculado, outra, altiva, de majestosas fachadas renascentistas e barrocas com devaneios mudéjares, que se descobrem em paisagens rurais de campinas e olivais (que crescem até nas encostas de montanhas). Há uma mistura de leveza e uma solenidade, de sagrado e profano, que têm a sua síntese na Semana Santa, festa de interesse turístico da Andaluzia que vai além da religião, que vai além da primeira impressão. Como muito nesta comunidade autónoma espanhola, a mais pobre de Espanha, mas também, provavelmente, a mais orgulhosa: milénios de histórias desencontradas deixaram a Andaluzia em carne viva e não poderia ser de outra forma.
Carmona
Se tivéssemos seguido o programa, a nossa primeira visão teria sido a Porta do de Sevilha, um tramo de muralha robusta e dourada, rasgada e coroada por diferentes civilizações que chamaram casa a Carmona. Como chegámos antes, entrámos pela Porta de Córdova e navegámos por ruelas até ao palácio feito hotel que foi o nosso poiso por umas horas. Só na manhã seguinte damos um rosto às sombras nocturnas e estas ganham outra dimensão — a das sombras da história. E mal sabemos nós nessa primeira incursão, que nos leva por uma corrente de casonas e palácios de cantaria trabalhada e ferro abundante, atravessando praças com feições mouriscas e ruas pedonais marcadas por comércio tradicional, quanta história se acumula na cidade de Carmona.
A Porta de Sevilha, portanto, para a entrada triunfal em Carmona e síntese apressada de milénios plasmadas em pedras: cartaginesas, romanas, muçulmanas, castelhanas e espanholas — e assim se percorre a história de Carmona, da Andaluzia e de Espanha, ainda que com “buracos”: não entram aqui os tartésios e os seus descendentes turdetanos (povos iberos que Estrabão dizia serem os mais cultos da Península Ibérica), tão pouco os fenícios que deixaram testemunho no nome da cidade — “car” é muralha.