Fugas - restaurantes e bares

  • José Quitério
    José Quitério Rui Gaudêncio
  • A
    A "obra definitiva" DR

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Um crítico de gastronomia “aberto às inovações” mas atento às “golpaças”

Uma pessoa agora chega a casa, vai para o computador, e se vier mal disposto, descarrega ali tudo. Na altura era preciso papel de carta, escrever, procurando não dar erros, arranjar um sobrescrito, fechá-lo, e depois ir ao correio, comprar um selo e mandar a carta. Dava trabalho.

As pessoas foram-se habituando às críticas, eu próprio de vez em quando lembrava ‘meus caros, se há crítica de cinema, de teatro, de música, porque é que não há-de haver crítica de restaurantes?’. Haver uma pessoa a apreciar isso é normal. Se existem poucos, ou só agora está a começar a existir, virão tempos em que haverá muitos. E veja-se a abundância que há hoje.

Ainda hoje a crítica gastronómica continua a não ter o mesmo estatuto das outras. 
Isso é uma visão terrível por parte dos responsáveis dos jornais. Francisco José Viegas escreveu sobre mim ‘este fulano entrou por uma área que era a mais desprezada nos jornais’. As pessoas pensavam ‘olha este, a escrever sobre comida, o que é que ele quer?’. 

A ambição dos directores dos jornais foi sempre que se fizesse com o menor custo. Eu devo isso ao Expresso, que, sabendo-se que é uma secção que sai cara, me pôs à vontade. Só conheço outro caso assim, que foi o PÚBLICO, já nos anos 90, com o David Lopes Ramos. De resto, é uma tristeza. Lembro-me de gente de outros jornais a quem só pagavam uma refeição reduzida a uma entrada, sopa, prato principal e sobremesa. É quererem fazer omoletas sem ovos. 

Mas em França a crítica apareceu muito cedo e foi sempre respeitada.
Não sei se o principal crítico e gastrónomo da altura, o Curnonsky [Maurice Edmond Sailland, chamado O Príncipe dos Gastrónomos, 1872-1956] pagava ou não as suas refeições. Sei que ficava ofendido quando não o reconheciam, o que já vai um bocadinho fora da ética.

Eu elaborei o meu código ético, e tive a honra de o meu saudoso amigo David Lopes Ramos ter praticado a mesma coisa. Agora o resto… isso de as direcções dos jornais não proporcionarem meios leva a situações de promiscuidade, às pessoas aceitarem convites, o que já vai inquinar a apreciação de uma refeição. Sempre defendi que se tem que ser incógnito, pagar a refeição sempre e em dinheiro, nunca com cartão para não ser identificado, nunca aceitar convites para inaugurações ou mudanças de cartas.

Tudo isso perturba a posição que o crítico tem que ter, a da distância, a independência absoluta através do anonimato. Nunca marcar uma mesa em seu nome, ser discreto quando está no restaurante - eu nos primeiros anos não conseguia tanto porque tomava notas. Mas depois acabei com isso e usava o gravador no bolso da camisa e lia a lista para o gravador.  

Há, no seu estilo, um lado muito grande de trabalho de escrita.
Essa foi uma preocupação. A crítica gastronómica pode ser vista como uma coisa de hedonistas de segunda classe que querem é comer e beber, glutões e beberolas. É preciso demonstrar que não é, que isto tem um conteúdo cultural. Quem se preocupa com estas coisas não é nenhum selvagem que só pensa em comer e beber. E quer que os leitores também vão para além do acto de comer e beber.

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