Nada mudou na capital desde então, mais de 80 anos após a aventura de Kessel no Iémen, a sua arquitectura permanece imutável, sólida, forte e orgulhosa. Numa palavra: única. Em duas: fascinante e única. Em três: delirante, fascinante e única. Qualquer viandante, quando descobre Sanaa, não sente necessidade de outra, ela preenche todos os seus desejos, todas as suas ilusões como viajante, mesmo aquelas que há muito foram perdidas porque Sanaa é, salvo melhor opinião, o maior museu ao ar livre do mundo mas, contrastando com qualquer museu, cheia de vida, o que engrandece – e de que maneira – a sua fisionomia, muito por culpa de um estilo de vida que permanece inalterado: basta imaginar um teatro com todos os seus figurantes trajando como em tempos de antanho.
O nome de Sanaa provém, há quem diga, do reino de Saba, significando “a fortificada”, porque a cidade, com os seus imames xenófobos, sempre se quis isolar e separar do mundo exterior, uma reclusão voluntária ainda hoje bem visível quando se erra pelas suas muralhas feitas de silêncio e se fitam os seus arranha-céus que expressam o bom gosto das suas gentes pela arquitectura e pelas suas casas, com as suas formas exteriores, as suas linhas, os detalhes que manifestam o desejo muito íntimo de materializar uma pequena obra de arte, um mundo complicado de entender que só se percebe quando as portas se abrem para dar lugar à hospitalidade que é uma das característica deste povo tão singular.
- Se mascares qat não vais dormir a noite inteira.
Estou sentado, comodamente, num mafraj, no topo de um edifício de seis andares, olhando a cidade à minha volta, a meio da tarde. Para baixo, são os dormitórios, a cozinha, o diwan, a sala de recepção dos visitantes, os armazéns e o piso onde guardam os animais domésticos. A memória voga sobre a cidade, o almoço no restaurante, a ida ao mercado para comprar qat fresco, a simpatia destas gentes, as suas vielas sem saída, os seus mercados, as suas mesquitas que agora chamam para a oração, a voz do muezzin que ecoa, as luzes cintilando ténues, a noite que cai sobre a cidade que tem de ser explorada na ânsia de nos perdermos, com a mesma ânsia com que deseja ser contemplada, admirada e, mais do que tudo, vivida.
Isfahan, Irão
A mulher lava os legumes numa fonte, num jardim bem cuidado, e estende-me a travessa, permitindo que faça a minha escolha. Opto por um pepino, ao qual ela junta sal, e com as lágrimas ameaçando o meu rosto, incapaz de perceber o ódio de tantos por um país que não se cansa de me seduzir, deixo que os meus passos me conduzam, sem pressas, até à Praça do Imã, na expectativa de viver e sentir os monumentos que expressam o esplendor de outros tempos, não sem antes me perder, em conversas eternas, pelo bazar que serpenteia entre a Mesquita da Sexta-feira, a mais antiga e venerada de Isfahan, e a própria praça antes designada praça do Sha, com as mesquitas mais deslumbrantes do Irão e talvez do mundo.
Como muitas outras construções em Isfahan, o mercado foi mandado construir, há quatro séculos, pelo xá Abbás I (o monarca mais importante da dinastia safávida, que conseguiu expulsar mongóis e turcos otomanos, ocupantes de parte da Pérsia), com o qual a cidade viveu o seu grande momento de glória. Com o país unido e livre pela primeira vez, Abbás I não perdeu tempo em idealizar Isfahan como a capital maior e mais formosa do mundo e, na verdade, a cidade transformou-se numa das mais destacadas metrópoles, com cerca de um milhão de habitantes que sentiam orgulho dos relatos de viajantes que enfatizavam a sua muralha, com os seus 40 quilómetros de circunferência, os seus 270 banhos públicos e as suas 1800 pousadas que abrigavam os membros das caravanas, um período de auge que não duraria mais de um século, até cair nas mãos dos afegãos, enquanto o poder político passava para Shiraz e, mais tarde, para Teerão.