Fugas - Viagens

  • Reuters/Mariana Bazo
  • Ireneu Teixeira
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Amazónia: Mergulhar na floresta

Nessa noite, e com Chaco aos remos, apenas Gabi me acompanhou na focagem do jacaré. Pares de olhos surgem amiúde por entre as sobras nocturnas para logo emergirem nas águas frias amazónicas. Na majestosa abóbada celestial pende um dos grandes luminares, a Lua, um farol que guia a nossa travessia num breu total. É a hora em que os animais sobem ao palco para as diversas actividades, desde a caça à reprodução. Representações que tornam o silêncio ensurdecedor, não descodifico os sons da floresta, clamores à desgarrada que assemelho a chamamentos humanos –  “ei...ei...ei...”. “Quem nos interpela?”, pergunto, aturdido. “São sapos [risos]; eles produzem este som muito estranho”, informa Chaco, de fala mansa.

Logo a seguir, novo alvoroço: eu e a parceira de aventura pulamos do banco do barco quando escutamos um som forte a nossos pés, batendo com força no chão de alumínio. Era um animal sem dúvida, mas não o víamos. Juntámos os feixes das lanternas e do meu frontal até alumiarmos um peixe dentuço a debater-se pela vida. “São piranhas brancas. Elas saltam da água e acabam por entrar no barco, mas não são perigosas, apesar dos dentes em serra”. (Nota amazónica: por aqui, vários peixes começam por "pira", que na língua indígena tupi significa "peixe". Destes, o mais famoso é o pirarucu, nosso almoço, mas há ainda a pirarara, o pirantaíma, o pirabotão, etc. Em tupi "anha" quer dizer "dente", ou seja, "piranha" é "peixe com dentes"). Gabriela, a intrépida bióloga, lá pegou no bichinho de beiças ameaçadoras e devolveu-o ao manto líquido. Um fenómeno com direito a iterações, num concurso de saltos entre piranhas e sardinhas. A busca pelo jacaré passou de fundamental a aleatória perante o espectáculo que a selva nos presenteava.

"Rema faz o remo leve

sente o remo da nascente

silêncio absoluto no rio

viajar ao universo

na estrada pelas águas

há uma nave do interior...'"

(Pescador- Raízes Caboclas)

A quebra, aparentemente normal, no gerador que fornece energia eléctrica à casa-pousada possibilitou ao grupo um jantar romântico à luz de velas. Aqui, luz artificial só umas horas e à noitinha, as suficientes para ressuscitar os aparelhos tecnológicos e tratar da higiene pessoal. Fui brindado com um quarto privativo enquanto o grupo sulista se distribuiu pelas camas feitas prêt-à-porter ou por redes dispostas ao longo de um compartimento apenas protegido por tecto e paredes de redes metálicas – os insectos são muito activos ao final da tarde, altura em que nos banhávamos em repelentes num ritual de extrema-unção.

Antes de me recolher, assomei à sacada para sentir o poder da liberdade e unir o meu coração ao pulmão da Terra. Pardacento, ao fundo, o rio reflectia a luz mortiça de uma lua a meia altura, permitindo ver a agitação dos pirarucus (chegam a atingir três metros e 200 (!) quilos e há quem lhes chame o bacalhau da Amazónia). O seu porte é de tal forma intimidatório que a fricção das barbatanas nas águas produz sons de tiros. Ao largo, jacarés montando emboscadas enquanto, na mata, macacos urravam ocasionalmente.

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