O sonho e realidade são um casal perfeito. Não os distingo.
A culpa é do uacari
O despertar faz-se aos primeiros alvores. A vida na selva madruga ao som do piar incessante da passarada, permitindo iniciar as actividades antes do astro-rei se esforçar por calcinar a maior várzea do Planeta. Cruzei-me com Chris, o birdwatcher. O maduro londrino congratulou-se por ter alguém com quem comunicar, depois de longos dias de abstinência de comunicação em inglês. Estava de partida. Encontrá-lo-ia mais tarde, em Tefé, na Pousada Multicultural, base para novas incursões, eventuais contas para outro rosário. Chegara a hora para a primeira expedição terrestre.
Camisas abotoadas até ao cocuruto para proteger, sobretudo, dos enervantes carapanãs, parentes próximos das nossas melgas e mosquitos, boné na cabeça e galochas até aos joelhos, máquina pronta a disparar e os sentidos lubrificados. A aula do “professor” Tito prolongou-se pelos seis quilómetros que percorrem a “trilha uacari”, que nesta altura do ano está “seca”, eufemismo porque a humidade está sempre presente, sobretudo no solo – no período de cheias, a canoa substitui a caminhada.
Os óculos de sol são desnecessários naquele teatro de sombras e luzes entubadas que, a custo, trespassam pela copa das árvores num admirável mundo novo, totalmente vertical – os olhos estão sempre virados para cima. Senti-me num trapézio sem rede ao trespassar emaranhados de cipós (ou lianas), parasitas que crescem a partir de gavinhas, de cima para baixo. Quando encontram uma árvore, dão-lhe o chamado abraço da morte, estrangulando a árvore parasitada, que acaba por desfalecer (já Júlio Verne os mencionava em A Jangada, em 1881).
Detemo-nos perante uma catedral vegetal. “Esta árvore chama-se apuizeiro, e é formada por centenas de cipós que se colam e descolam, deslaçam e entrelaçam uns nos outros, formando uma árvore verdadeiramente singular. Quem quiser pode entrar no seu interior, ainda que muitas sejam reduto das perigosíssimas jararacas. Candidatos?”, gracejou o amável Tito. Desconfio do silêncio embusteiro da floresta, aqui tudo mexe, pica e ferra. Já não sabia para que lado fica o rio nem a comunidade, mas o nosso guia, mesmo com pouco estudo, tem uma sabedoria de poucos. Conhece cada canto da floresta, cada árvore, cada bicho. É incrível caminhar do seu lado e escutar as suas histórias. Para complementar a minha fortuna, o grupo de biólogos colocava rótulos a cada animal avistado: “Olha um macaco-guariba e ali um bando de garças brancas e um bando de garças-pantaneiras, que emitem sons estridentes; e acolá um gavião de bico-de-gancho”.
Depois, ainda, os bicos-de-asa e um sem número de aves cujos nomes científicos se assemelhavam a impropérios. Giuliano Galvani, gaúcho e gremista, conhecia-os dos livros mas agora estavam ali ao seu dispor, numa aula de biologia ao ar livre. “Aqui existe uma biodiversidade admirável, daí termos feito o desvio de Manaus para cá”, justificou. Já junto ao rio, tentámos entrar em contacto mais de perto com um jacaré, mas as sábias palavras de Tito tiveram um efeito preventivo “Atenção que eles são rápidos a trepar ladeiras.”