Os “cortiços” da cidade
Se o 1916 Walking Tour termina aqui, a caminhada por 1916 continua e não é preciso andar muito para encontrar novo local icónico daqueles dias. Depois da rendição, a noite dos rebeldes foi passada em Parnell Street, no rebaptizado Garden of Rememberance: fazia parte do jardim do Rotunda Hospital, a mais antiga maternidade do mundo, que também foi, ironicamente, o local de fundação dos Irish Volunteers. É agora um memorial a todos os que ao longo dos séculos lutaram por uma Irlanda livre (e nos últimos 200 anos foram seis as rebeliões e insurreições). O pequeno parque, encaixado abaixo do nível da rua, o que proporciona uma panorâmica abrangente, está repleto de símbolos religiosos e da mitologia céltica. A galeria municipal Hugh Lane e o Museu dos Escritores estão instalados em imponentes casas georgianas do outro lado da rua (em 1916 eram “cortiços”: num quarto poderia viver uma família alargada”, sublinha Mick Langan) e no Ambassador Theatre um enorme cartaz anuncia a exposição Revolution 1916 — Dublin the city that fought an empire é o slogan —, que se anuncia como “a maior colecção privada de artefactos de 1916”.
A noite já está a assentar sobre Dublin e acima dos telhados a Spire já está iluminada, quando nos aproximamos da Inner City. Para trás há-de ficar a zona georgiana mais antiga da cidade, grande parte restaurada, devolvendo a simetria sóbria a praças “tão bonitas como Edimburgo e Londres”, considera Langan. “É preciso não esquecer que Dublin foi durante muito tempo a segunda cidade do império.” E muita da cidade continua igual à de há cem anos. “Não havia dinheiro para pôr abaixo”, explica o nosso guia, “e quando houve dinheiro já se dava outro valor”. As condições de vida, essas, mudaram muito: no último século, depois da Guerra da Independência, da Guerra Civil, da Proclamação da República, da emigração massiva, da entrada na então CEE, do apogeu (e posterior queda) do tigre celta, e chegados à austeridade actual (que obrigou ao pagamento da água, causando grande descontentamento e avanços e recuos na aplicação da medida), os cortiços desapareceram. Na Henrietta Street, a mais antiga rua georgiana da cidade, começou por viver a aristocracia, mas em 1916 vinte casas chegaram a albergar 800 famílias — “Dublin era a cidade mais militarizada, a que tinha mais cortiços e o maior red light district do império”, nota o nosso guia. É uma rua empedrada, curta, um cul-de-sac, para a qual está prevista a abertura, ainda este ano, de um museu que será um espelho das duas realidades que aqui viveram.
Foi entre esta zona e Four Courts, na North King St., que em 1916 se deu o maior massacre de civis da rebelião. Com tantas voltas que damos, parece que estamos muito distantes, mas, na verdade, estamos a apenas dez minutos do GPO. Se essa zona foi central em todas as movimentações, os outros combates deram-se numa espécie de bolha, com os britânicos a formarem um círculo e a atacar de fora, para depois entrarem no perímetro quase em guerrilha urbana. E é a fechar o círculo que nos dirigimos a Four Courts, com o cheiro intenso de cerveja a torrar no ar (a fábrica da Guinness está no horizonte e uma curiosidade: os britânicos utilizaram as cubas da cervejeira para blindar os seus camiões), que como o nome revela é o centro do poder judiciário da cidade (e do país). Em 1916 foi também um ponto estratégico: na margem do Liffey, junto dos cais a norte, e a caminho de alguns quartéis militares, o complexo de edifícios neoclássicos (1802) permitia controlar as movimentações das tropas britânicas.