A verdade é que por aqui não há domingos ou dias santos; há, sim, dias em que o mar se mostra disponível e o peixe se oferece em sacrifício, mas também outros em que parece que até o peixe foge… “Nesses dias nem vale a pena insistir.”
Por isso, noutro dia qualquer, a miragem seria a mesma de há cem anos: barcos em forma de quarto crescente e com a proa bem alta de bico pontiagudo a entrarem pelo mar adentro e a enfrentarem sem temor a violência do rebentamento das ondas atlânticas para colocarem as redes (xávegas) com que praticavam as artes. A mesma ou quase. Porque as juntas de bois que eram levadas para o areal para puxarem as redes carregadas de peixe miúdo, sobretudo carapau, foram substituídas por tractores. E em cada barco já não seguem dezenas de homens, mas apenas uma mão cheia deles.
A vida pode ser dura, como se constata pelas mãos de João Facão, de 77 anos. Mas a agilidade não foi perdida. Nem a vontade ou a memória, forças motrizes que levaram este pescador e artífice a juntar-se a Aperino Gil, 75 anos, e a João de Jesus, de 64, na missão de reproduzir em maquete a Palheiros de Mira dos anos 40. “Foi tudo feito de memória”, diz, de peito inchado de orgulho, Ti’João, como nos é apresentado. “Foram dias e noites aqui; parecíamos miúdos”, recorda a sorrir. “E não recebemos um tostão”, sublinha. A obra, que pode ser conhecida no Edifício da Lota, estende-se por uma sala e mostra os antigos palheiros em madeira assentes em estacas, tal e qual descrito por Raul Brandão em Os Pescadores (1923): “Mira, terra de pescadores, palheiros, de madeira estacada na ondulação da duna, que sobe como uma vaga até ao alto. De um lado uma poça, do outro, lá no fundo, o mar levantando a areia com o bater compassado e eterno.”
Poucos daqueles palheiros ainda se vêem. Apenas a restaurada capela ou o Museu Etnográfico Praia Mira. Os outros foram dando lugar aos edifícios de apartamentos, muitos a alugar nas férias. “Isto é que era bonito”, defende João Facão, enquanto os seus olhos se passeiam pela rua principal desta maquete, pavimentada ainda a areia. “Bonito… casas sem condições nenhumas!”, contrapõe José Vieira, ao mesmo tempo que defende um progresso que, certifica, melhorou muito a vida dos pescadores.
Com ou sem desenvolvimento, há uma coisa que se mantém como há um século nesta “pesca cega”: o peixe que, muitas vezes, “ainda chega à lota aos saltos”. “Aqui o peixe não é fresco; é fresquíssimo”, sublinha José. “Continua a ser um espectáculo quando a rede chega ao areal e todos se juntam em torno da escolha do peixe.” Uma selecção que, nos dias que correm, depende em muito do tamanho: todo o pescado com menos de 12cm (“quase é preciso andar de fita métrica”) é devolvido ao mar: “Comida para as gaivotas”, reclama Vieira. “Tudo para proteger as espécies. Como se o carapau, que pescamos da mesma maneira há séculos, fosse agora desaparecer…”
Viagem à Gândara
Enquanto pela praia se pode observar in loco como a arte xávega é praticada no século XXI, no Museu do Território da Gândara, no centro de Mira, é possível, desde há um ano, uma verdadeira viagem ao passado. Aqui, fica-se a conhecer todas as memórias associadas ao mar. Através de documentos e objectos, mas também com a ajuda de um documentário cedido pela RTP – Onde os Bois Lavram o Mar, realizado por Adriano Nazareth em 1959. Ou numa sala interactiva, na qual os dedos vão, por um gigante ecrã táctil, invocando as artes da pesca, mas também os sons da faina ou os trilhos por onde nos podemos passear. Sobretudo se se tiver uma bicicleta. É que em Mira todos têm “uma bicicleta; é aproveitar que é tudo a direitinho”, confidencia Brigitte Capeloa, enquanto nos guia pelo novel museu que se propõe a contar a história da Gândara — até à Pré-História.