A lenda da Bufareira não é recordada por uma avó que, junto ao rasgo serpenteante na rocha, tenta explicar a razão daquela forma a um rapaz dos seus oito ou nove anos; lá em baixo, há quem, sem provavelmente sonhar com princesas e bezerros dourados, fuja de olhares indiscretos para dar umas braçadas por uma das bufareiras, cuja origem também dá azo a várias teorias. Uma delas pode ler-se no livro Vila de Rei e o Seu Concelho, com informações compiladas por José Maria Félix, em 1968. Nele fala-se da possibilidade de estas piscinas naturais serem resultado de pegadas de gigantes pré-históricos. “Não nos custa a acreditar que essas covas sejam a consequência de pegadas e ovas de sáurios gigantes existentes na época mesozóica.”
É com os répteis pré-históricos em mente que prosseguimos por circuito circular e íngreme que tão depressa nos situa entre os cheiros quentes e fortes que emanam dos pinheiros e dos eucaliptos, como a seguir nos guia por frescos túneis de delicada vegetação. Pelo trajecto, esculpido na pedra e atravessado por pequenas e estreitas pontes que nos vão levando de margem a margem, várias conheiras (escombreiras formadas por amontoados de pedras) indicam uma milenar exploração de ouro a céu aberto e algumas exibem hoje imagens religiosas, doadas por populares, que transformam o local numa espécie de santuário. É junto destes anjos e santos que se consegue ver mais longe, abraçando com o olhar um bom pedaço do irregular Zêzere, assim como as demais formações quartzíticas que moldam as escarpas mais próximas. Sendo sítio que não recebe enchentes constantes, não é difícil deixarmo-nos encantar por uma sensação de comunhão com a natureza. Sobretudo se abandonamos o trilho e avançamos pelo mato adentro — a única forma de, por terra, chegar a uma das maiores cascatas.
Não se pense, porém, que estamos sempre sozinhos: de vez em quando algum caminheiro cruza-se connosco ou somos nós que damos de caras com um trio de jovens amigos em saltos acrobáticos para uma das mais profundas bufareiras — com direito a coreografia ensaiada e a máquina fotográfica a registar os melhores mergulhos.
Em modo Tom Sawyer
São os saltos que primeiro nos chamam a atenção. Do tronco inclinado e agarrados à corda amarrada a uma árvore que se debruça sobre o rio Ceira, a alguns metros da represa que permite à praia fluvial de Góis manter uma ilha em areia branquinha ao longo de todo o Verão, uns miúdos protagonizam uma cena a lembrar uma qualquer traquinice vivida por Tom Sawyer em parceria com o fiel amigo Huck. Só depois os nossos olhos se deixam arrastar pela copa da árvore, onde parecem crescer, em vez de laranjas ou peras, rapazes. Isso mesmo: crianças que tentam voar qual Tarzan ou que se deixam simplesmente cair dos ramos mais altos para a água corrente. Não vale a pena sequer disfarçar: a descrição acima revela mesmo uma ponta de inveja de não sermos uma daquelas crianças. Embora por esta zona da serra a idade não seja impedimento para nada. Como nos demonstra, aliás, um grupo de homens que, acabadinhos de chegar de fazer downhill em BTT, se atiram à água (ou se deixam atirar…) como se não houvesse amanhã. Um há que, numa atrevida manobra, até leva a bicicleta consigo (e perde o assento, para gáudio dos companheiros de risota).