Partimos para o MARL. São quase 20km de trânsito intenso num final de tarde em Lisboa. Durante a viagem Hugo conta-nos que a rotina diária da casa passa-se entre as 8h e as 24h. O pai é o primeiro a chegar por causa do peixe e à hora dos jantares já leva 12 horas de trabalho, a que irá somar mais três antes de ir para casa com 15 horas de jornada cumpridas. Hugo chega cerca das 10h e fecha a porta perto da 1h, depois de o restaurante ter encerrado às 24h. “É uma actividade trabalhosa, passam- se aqui 12 a 14 horas, mas tem de haver um acompanhamento senão não resulta.” Aos 34 anos, imaginase a fazer isto para sempre: “Estou identifi cado com o negócio pois cresci aqui.” E acrescenta mais alguns detalhes, como as horas rígidas para atender fornecedores, sem incomodar os clientes nem os preparativos da cozinha e divisão das tarefas de gestão entre ele, o pai e a irmã, que também trabalha na sala.
Já no mercado, entre a azáfama de empilhadores que transportam paletes entre pavilhões, vamos directos à banca de João Paiva, um agricultor da Malveira que se especializou em hortaliças. É um homem corpulento de olhar dócil, que com um sorriso atrevido atira: “São bons clientes e sérios”, aludindo ao facto de pagarem a pronto e em dinheiro, e surgeme uma frase dita há minutos por João Araújo. “As boas casas têm que ter bons fornecedores, e quem os tem, tem que os estimar também. Quando somos bons pagadores e somos cumpridores, temos sempre o melhor produto.”
Na banca dos citrinos, Hugo optou por levar laranjas da África do Sul, pois as do Algarve ainda estavam secas. Logo em frente fi cam as frutas exóticas, onde serão carregadas várias caixas de manga e papaia. Jorge Mendonça, o responsável, explica que não é hábito regatearem-se preços, e exemplifi ca: “A restauração quer ter o melhor preço, mas fi xo durante meses. Assim não têm de mexer nos preços da ementa.” Desta forma, o cliente do restaurante também é beneficiado.
Em menos de uma hora, e algumas centenas de euros depois, a carrinha refrigerada fica repleta de cenouras, nabos, tomates, vários sacos de grelos e frutas diversas. Só ficaram a faltar os marmelos para assar, uma das frutas de época que tem lugar cativo na ementa por esta altura. Alguns produtos serão entregues mais tarde.
Regressamos ao restaurante, e na garagem surge uma pessoa da cozinha para ajudar a descarregar a mercadoria. Na sala, o movimento dos jantares já é visível. Na grelha já se alinham alguns peixes, enquanto na cozinha a dobrada à moda do Porto ou o pato assado com arroz esperam ser pedidos. Para João Araújo, é o terceiro capítulo do seu longo dia, mais um dos seis semanais que cumpre com a entrega de quem vive para a restauração. O empenho da sua família e equipa trazem à mesa a nobreza do senhor “Dom João”.
(Fortunato da Câmara)
DOM FEIJÃO Largo Machado de Assis, 7D 1700-116 Lisboa Tel.: 218 464 038 / 964 285 116 Encerra aos domingos
Os olheiros de Pedro Lemos
Mais do que de exigências específicas ou pedidos muito detalhados, Pedro Lemos prefere dizer que os seus fornecedores sabem exactamente o que quer, como cozinha, quais os seus gostos e preferências: “São os meus olheiros e, além disso, também já são amigos.” Para este chef com restaurante homónimo na exclusiva zona da Foz Velha, no Porto, o dia pode começar antes de alvorecer. Se o mestre da embarcação apanha algo especial que corresponde ao que Pedro procura, liga-lhe a avisar e quando atraca lá está ele à espera para recolher o pescado. Pedro tem dois contactos deste tipo com mestres de embarcações que trazem para o mercado de Angeiras, a norte de Matosinhos, peixes de encher o olho a quem o visita. É a partir do peixe fresco que arranja que vai defi nir o menu do dia, mas por vezes antecipa-se e liga aos mestres para saber com o que pode contar antes de saírem para o mar.