É verdade que a massificação do turismo, o advento da televisão e da Internet tornou mais pequeno e familiar o mundo que a expansão ultramarina dos séculos XV e XVI imensamente desvendou. No entanto, ainda há espaço para deslumbramentos. Carlos Vaz Marques lembra as suas experiências em Veneza. "Achei aquilo extraordinário, porque é uma cidade que está sobreexposta em termos de imagem, mas eu cheguei e aquilo surpreendeu-me como se não tivesse visto nada, como se não soubesse nada. E eu pensava que já sabia exactamente tudo e já tinha visto as imagens todas". E, por causa dos livros, tem uma viagem de sonho. "Os livros do [V. S.] Naipaul fizeram-me ‘ir' à Índia e a querer lá voltar, de corpo inteiro."
É o sortilégio da literatura de viagens. "A que nos leva a imaginar que também podemos viajar", sublinha Francisco Guedes. Por isso lemos, e, quando podemos, viajamos. E se viajar tem tipologias diversas -por exemplo, numa sessão anterior do LEV, o escritor angolano Ondjaki falou de uma viagem que fez entre a casa e o galinheiro da avó, e Xavier de Maistre escreveu "Voyage autour de ma chambre" -, a viagem na literatura não as tem menos.
É desde logo difícil distinguir satisfatoriamente "literatura de viagens" de literatura que viaja. Na verdade, "literatura de viagens" é uma designação de fronteiras voláteis, que transgride géneros literários e se define mais "pelas suas incaracterísticas do que por traços inconfundíveis e fronteiras estanques", nota Mário Matos, director do Departamento de Estudos Germanístico e Eslavos da Universidade do Minho (UM), via e-mail.
Fernando Cristóvão, docente da Faculdade de Letras da Universidade Lisboa (FCUL) e coordenador da obra Literatura de viagens Da tradicional à nova e à novíssima, crê que ela deve englobar sempre as componentes de história, antropologia e, claro, literatura. Mário Matos aponta o "pacto de leitura" que ela insinua, uma vez que "pressupõe tratar-se de um relato ‘autêntico' de uma viagem ‘realmente' feita". "Mesmo que, na realidade, essa nunca tenha passado de uma mera "viagem ‘de poltrona' e a figura textual do sujeito viajante não seja equivalente ao autor": Karl May, escritor alemão de aventuras e viagens popularíssimo na segunda metade do século XIX, nunca viajou.
Por isso, Mário Matos exclui da categoria de literatura de viagens os romances, mesmo os "de viagem", que são lidos como ficções criadas pelos autores, ainda que muitas vezes alimentados por "vivências, situações, personagens e paisagens factuais". No entanto, não deixa de reconhecer como assunção mais ou menos consensual entre os estudiosos actuais que, sendo um "género híbrido ou andrógino", vacila "entre a ficção e o ‘real'", misturando-se "os mais diversos estilos de escrita e discursos oriundos de múltiplas áreas disciplinares". O que significa, na prática, que um livro de viagens pode ser narrativo, poético, epistolar, de reportagem.
É deste modo que Carlos Vaz Marques analisa a literatura de viagens. "Tudo o que fala de locais, tudo o que possa eventualmente ter a geografia como personagem. Acho que pode caber lá tudo". Os Lusíadas?, queremos saber. "Também. Mas se o conceito fica tão lato, também fica lasso". A verdade é que Dublin pode ser conhecida, com muito fôlego literário, com "Ulisses", de James Joyce na mão; e quem lê "O Ano da Morte de Ricardo Reis", de José Saramago, não deixa de "perceber" Lisboa, por exemplo.