E esta mudança de paradigma aconteceu, antes de mais, pela revolução dos transportes, aponta Fernando Cristóvão. "Passou a viajar-se mais rápido e as razões porque se viaja mudam radicalmente". Da necessidade passa-se para o lazer, uma mudança que já vinha sendo ensaiada desde que os Grand Tours se transformaram em viagens iniciáticas (de conhecimento e deleite) da aristocracia europeia integrados habilmente em obras de Henry James, por exemplo, ou narrados em primeira mão por grandes vultos da cultura ocidental, como Goethe e a sua "Viagem a Itália". Também Laurence Sterne, em 1768, fez "Uma Viagem Sentimental" pela França e Itália, e Lord Byron deixou diversas obras com as suas deambulações (românticas) europeias (Grécia, Itália, e, claro, Sintra, "o glorioso Éden").
"Para onde vou?"
Desde então, os meios de transporte evoluíram ainda mais, e com eles a comunicação e a representação até ao contexto actual da era do turismo de massas e da globalização, caracterizado pelo que Mário Matos define como "hipermobilidade" e "hipermedialidade". Porém, se estas revoluções tecnológicas imprimiram marcas indeléveis à prática da viagem, no que se refere às representações textuais do género da literatura de viagens (excluindo as suas novas formas mediais, como o cinema, a televisão ou a Internet), estas permanecem tal como foram "definidas" na viragem do século XVIII para o século XIX, quando se assistiu a uma "diferenciação da literatura de viagens em diversos subgéneros com funções e públicos diferentes", sustenta Mário Matos.
Começou, aponta, o relato de viagens de divulgação científico-popular sobre as grandes expedições da era do imperialismo colonial (a célebre "A Viagem do Beagle", de Charles Darwin, ou "Cosmos", onde o naturalista Alexander von Humboldt narra as suas expedições à América do Sul, fazem parte desta corrente, que Fernando Cristóvão integra num período de mudança já não é bem literatura de viagens tradicional, mas ainda não é bem a moderna -, a reportagem de viagem e o relato de viagens poético, este mais subjectivista e cultivado por autores profissionais que dominam a "arte da viagem e da escrita".
Fernando Cristóvão acrescenta ainda as obras de reconstituição histórica (e dá o "Equador", de Miguel Sousa Tavares, como exemplo), as grandes reportagens ("mesmo que sejam sobre o abominável homem das neves"), os textos de lazer e a reportagem de guerra e no LEV, o tema homónimo confirma essa tendência: poucos duvidarão que a obra de Robert Fisk, o correspondente de guerra inglês que, em 2010, foi um dos ausentes em Matosinhos (vítima, não da guerra, mas do vulcão islandês), "A Grande Guerra pela Civilização", continue a ser um fresco poderoso do Médio Oriente.
E Ryszard Kapuscinski, o jornalista polaco que chegou a ter o epíteto de "maior repórter do mundo", apesar das dúvidas recentemente colocadas sobre a veracidade dos seus trabalhos, deixa uma série de obras marcantes, fruto de um percurso que o levou a acompanhar guerras e revoluções, na Ásia, África ("Ébano. Febre Africana" vai ao Congo com Patrice Lumumba) e América Latina ("A Guerra do Futebol" acompanha o confl ito entre as Honduras e El Salvador, em 1969).