Fugas - Viagens

Enrique Marcarian/Reuters

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Viagem à volta dos mundos dos livros de viagens

Não são literatura de viagem, mas não deixamos de viajar neles e podemos viajar com eles, quase que como de um guia turístico se tratasse. E, não obstante a colecção que Carlos Vaz Marques coordena só incluir livros de não-ficção, de modo algum o repugna o que estenda o território das viagens para as áreas de ficção. Aliás, um dos livros que gostaria de editar é de ficção. "O Hav", de Jan Morris (de quem a Tinta-da-China já publicou "Veneza"), onde a autora galesa inventa um território e depois escreve o livro de viagens. "Há uma intertextualidade, um jogo que ela estabelece entre a literatura de viagens e a literatura de ficção."

Viagem no tempo

Houve um tempo em que essa distinção não se fazia claramente. Há muitos séculos que o mundo viaja na "Odisseia", de Homero, que Mário Matos considera constituir o arquétipo da representação literária da viagem. Na epopeia de Ulisses encontra-se o que ainda hoje se espera encontrar na literatura de viagens "o espírito aventuroso, a concepção circular da viagem, um espécie de expectativa catártica em relação à viagem ou ainda o desejo de que a experiência do outro, do invulgar, alargue o horizonte individual, proporcionando uma visão mais abrangente do mundo".

Durante a Idade Média, viajou-se em comércio, cruzadas e peregrinações religiosas e o desconhecido foi diabolizado de tal forma que a literatura de viagens medieval contém uma "forte dose do que hoje consideramos o ‘fantástico'", nota o docente da UM. Veja-se o "Livro das Maravilhas do Mundo", de Sir John Mandeville (c. 1356), que vai até ao Extremo Oriente, em encontros com dragões e unicórnios, o bem (cristão) e o diabólico (o herege, não-cristão), e que durante séculos foi lido como uma narrativa autêntica, enquanto o relato de Marco Polo, um dos mais famosos viajantes "reais" da história, foi "descartado" como invenção.

Depois, com as viagens de expansão dos séculos XV e XVI iniciou-se o que Fernando Cristóvão classifica como a literatura de viagens (europeia) tradicional, que arrasta uma carga mágica de revelação de "novos mundos" e da vivência de aventuras extraordinárias "são viagens arriscadas, lentas, têm finalidades e grandes mentiras", resume. Durante séculos, Fernão Mendes Pinto foi popularmente (e jocosamente) conhecido por um trocadilho: "Fernão, Mentes? Minto". A sua "Peregrinação" pareceu sempre excessiva aos seus contemporâneos e vindouros. "Afinal, até parece que mente muito pouco", clarifica Fernando Cristóvão.

No século XIX tudo mudou, com o advento do turismo. Os leitores tornaram-se viajantes e passaram a exigir verosimilhança não é à toa que, por exemplo, o guia turístico, "subgénero utilitário" da literatura de viagem, considera Mário Matos, surgiu na primeiras décadas do século XIX (os "Murray Red Books" em Inglaterra, o "Baedeker" na Alemanha, e o "Guide Bleu" em França), a acompanhar a "institucionalização" do turismo moderno.

De facto, podemos dizer que as viagens e a literatura de viagens modernas se forjaram em oitocentos. A viagem passa a ser encarada como "busca de conhecimento, recreio e colecção de experiências individuais", sustenta Maria Luísa Leal, investigadora na área de Filologia Portuguesa na Universidade da Extremadura. Procura-se o exotismo, a aventura e, claro, o turismo e esta nova obsessão é, aliás, "parodiada", sublinha a investigadora, por Almeida Garret, em "As Viagens na Minha Terra": uma viagem "nada menos do que a Santarém".

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