A corrida é caótica. Não se vê a linha de partida nem de chegada. Não se ouve qualquer som que indique que os dromedários já correm, mas a verdade é que eles já aí vêm. Trazem passo de corrida, mas optaram pela estrada em vez da pista de areia e procuram espaço para continuar a avançar entre a multidão. Um dos animais, desnorteado, decide correr em ziguezague e dirige-se, de boca aberta e língua pendente, um monstro alto de muitos quilos, para todos os que nos encontramos colados ao gradeamento, sem hipótese de fuga. As mulheres começam a fazer um ruído característico, de muita língua e garganta, entre gritinhos expectantes, e um homem agita os braços, colocando-se em frente ao animal desvairado, obrigando-o, finalmente, a desviar-se da multidão, desaparecendo rua acima. Ficam as gargalhadas, muitas gargalhadas.
A corrida, que nem sabíamos que já tinha começado, passou por nós a alta velocidade e terminou fora da vista dos curiosos, sem sabermos quem foi o vencedor (se é que houve vencedor). Os risos perseguem os curiosos que ainda comentam a maluquice daqueles minutos, enquanto já se encaminham para o areal onde se irá disputar o hóquei tradicional dos nómadas.
Regresso às origens
Todos os anos, em Março, M’hamid é o palco do festival que procura preservar e divulgar a cultura nómada. Noureddine, ele próprio descendente de uma família nómada, é o homem por trás da ideia. “Os nómadas precisavam de um festival que fale deles”, diz, numa conferência de imprensa improvisada, mil vezes interrompida pelo toque do telemóvel. Da pergunta “Porque não fazer um festival?” passou-se à concretização de um evento que procura manter vivas tradições que, de outra forma, estavam em risco de desaparecer. Porque nómadas, em Marrocos, já quase não há. A seca e a escolarização das crianças empurrou-os para o sedentarismo e, com essa nova forma de vida, as tradições milenares começaram a esboroar-se. “O festival pretende salvaguardar o que podemos desta cultura ancestral, de um modo de vida que está a desaparecer”, defende Noureddine, sem esconder que há também uma clara intenção de divulgar o Sul de Marrocos como um destino turístico, associado ao festival. “Temos um enorme potencial com os oásis, os kasbah, as dunas, os trekkings, os passeios de dromedário e os produtos típicos... Os nómadas estavam no coração do mundo, eram um símbolo de cruzamento de culturas, mas se não fazíamos algo rapidamente para preservar as suas tradições, o seu savoir faire, podia ter-se perdido tudo”, diz.
Hoje, garante Noureddine, tradições como o hóquei na areia, que “há 30 anos tinha praticamente desaparecido”, começam já a regressar aos hábitos dos povos do Sul. O pão de areia voltou a ser produzido e ser de origem nómada já não é mal visto. “Na década de 1990 havia uma grande ocidentalização de todos, hoje há um regresso às origens, o recuperar de tradições. O festival é visto com orgulho. Sinto que, hoje, os jovens não são obrigados à ocidentalização, como eram há uns anos. Hoje podem escolher”, diz.