O semáforo do cruzamento entre as ruas Miloseva e Nemanjina fica verde, depois vermelho, depois verde, depois vermelho — como em qualquer outra cidade europeia àquela hora do dia, a qualquer hora do dia, uma mulher corre para apanhar o autocarro sem largar o guarda-chuva, um homem caminha apressado para o escritório sem largar o telemóvel, o trânsito pára, depois arranca, depois pára, depois arranca. Como em nenhuma outra cidade europeia àquela hora do dia, a qualquer hora do dia, militares armados patrulham dois edifícios-fantasma, vigiando as últimas ruínas de uma longa e repetitiva história de destruição e de reconstrução — ruínas de um passado muito recente, um passado quase presente, que é impossível não lamber (como se lambe uma ferida) quando se está em Belgrado.
Mais de 14 anos depois, Belgrado já não está exactamente neste cruzamento onde a 7 de Maio de 1999 a NATO bombardeou as instalações siamesas do Ministério da Defesa — um edifício a multiplicar por dois desenhado pelo arquitecto Nikola Dobrovic no pós-Segunda Guerra Mundial, quando as feridas a lamber ainda eram outras, a partir da imagem mental do desfiladeiro de um rio da Bósnia que em 1943 foi cenário de uma batalha sangrenta entre a resistência partizan e o exército nazi. Tal como o trânsito, Belgrado parou aqui, e depois arrancou. Sem largar as suas esplanadas, sem largar os seus cafés, que imaginamos sempre cheios, como agora, mesmo em 1999 — mas é fácil imaginar quando não se esteve lá.
Não tem sido preciso imaginar, aqui. Desde que Belgrado é Belgrado, a cidade foi massacrada mais de 40 vezes, algumas delas no século XX, algumas delas de forma bastante gráfica (basta dizer que, na fase mais turbulenta da Segunda Guerra Mundial, os animais fugiram do jardim zoológico e andaram à deriva pela cidade, como num filme de Emir Kusturica). Faz parte de estar ali, em cima da fractura invisível que há séculos divide a Europa ao meio entre o Leste e o Oeste: em sítios destes, às vezes a terra treme. O que talvez explique esta urgência de beber cafés, fumar cigarros e ficar a pé fora de horas enquanto está quieta.
É disso que nos fala Simonida, a guia que nesta primeira tarde em Belgrado nos conduz ao sítio onde a cidade terá começado, a Citadela de Kalemegdan, para mostrar como é "auspicioso" o sol a pôr-se atrás da confluência do Sava com o Danúbio. De costas para os tanques e para os misséis do Museu Militar, de frente para as curvas e para as contracurvas dos dois rios, Simonida aponta para os bairros novos da outra margem, como a estátua do homem nu (o Monumento da Vitória) que em 1928 o conservadorismo do centro da cidade não quis aceitar, e conta mais uma história de reconstrução: uma história com 110 metros da altura, o tamanho da Torre Usce, que em tempos foi a sede do Comité Central da Liga dos Comunistas da Jugoslávia e que recentemente, depois de danificada pelos aviões da NATO, não só se recompôs dos estragos como ainda cresceu dois andares, provando que o que não mata Belgrado engorda-a.