Fugas - viagens

Continuação: página 5 de 8

Kiev, a porta da Ucrânia

Falta o mosteiro do Lavra para ficar com o retrato da Kiev que não se pode perder. Como em todos os mosteiros ortodoxos, a porta de entrada é monumental e, neste caso, excepcionalmente bela. Lá dentro, um complexo gigantesco, do qual se destacam a Catedral do Dormitium (reconstruída em 2001), a torre sineira, as grutas e a igreja do refeitório. Não se pode entrar na primeira - uma situação muito frequente nas igrejas ortodoxas - e as grutas do mosteiro também estavam fechadas. Passei ao lado de uma das mais extraordinárias iconóstases (ícones que estão no altar que separa as naves do santuário, onde só o padre pode entrar) da capital. Construído no século XI, o Dormitium foi destruído por três vezes, a última das quais durante a II Guerra Mundial. Desforrei-me com a torre barroca e um pequeno, mas muito interessante, concerto de carrilhão.

Uma polifonia percorre o céu cinzento do fim de tarde que precede a minha despedida de Kyiv. É o momento em que fechamos os olhos e deixamos os sinos conduzirem-nos até The Great Gate of Kiev, uma das peças de Quadros numa Exposição, de Mussorgsky, que ilustra uma porta projectada para a cidade que nunca foi construída. De novo a cidade imaginária. E Kiev é de facto a porta para um país, o ponto onde a língua ucraniana e a língua russa mais se confundem: uma fronteira dentro de um país cujo nome deriva de "fronteira", em eslavo.

Sentado no espaço para os peregrinos deixo-me ficar a ouvir a missa. Toda a gente está de pé, surpreende a intensidade dos coros, fica-se com a ideia de um culto mais cru do que o católico. Pormenor: as confissões são feitas em público, na igreja, ainda que não à hora da missa.

Cheguei imaginando uma cidade agreste e encontrei uma cidade aberta, amável apesar do gigantismo, tapada pelas colinas onde se foi escrevendo uma história essa sim agreste - a de uma cidade que foi o primeiro centro de uma civilização e que, depois de destruída pelos mongóis, só recuperou a sua autonomia com a independência, em 1991. As catedrais e mosteiros ortodoxos são a marca maior dessa identidade fundadora que Kiev reclama para si, como legitimação, aliás, de uma independência que começou a ser projectada, nos moldes actuais, em pleno século XIX. Apesar da rivalidade entre as igrejas ortodoxa ucraniana e russa, não são as igrejas que vincam as diferenças entre a Ucrânia e a Rússia. O barroco, um dos estilos dominantes na cidade, é comum às catedrais ucranianas ou ao Palácio Mariinsky ou à igreja de Santo André, dois marcos deixados pelos czares da dinastia Romanov nesta cidade que foi a terceira tanto da Rússia imperial e da União Soviética, a seguir a Moscovo e a São Petersburgo (ou Leninegrado).

O traço mais forte da era soviética acaba por ser a enorme (102 metros de altura) estátua da Mãe Pátria, dedicada às vítimas da Grande Guerra Patriótica (foto ao lado). Na Ucrânia, as figuras femininas costumam ser as mais importantes nestes monumentos, nos quais há sempre uma chama acesa. Feios e brutais, esses monumentos impõem-se ao nosso olhar como a evidência da brutalidade inexplicável do conflito.

--%>