SOS cirílico
É isso que defende Mikhail Ratushnyi, um dirigente de uma organização não-governamental dos ucranianos na diáspora e também ex-deputado. Vai ser o meu cicerone e abrir-me as portas da cidade que ainda me está fechada. Encontramo-nos à hora marcada no café do Hotel Salyut, um edifício redondo à beira do parque que dá para o rio. Eu bebo chá, ele bebe café - os ucranianos são consumidores ávidos de café. Trocamos impressões sobre a comunidade ucraniana em Portugal. Falo-lhe também em Clarice Lispector, a escritora brasileira que nasceu na Ucrânia em 1920. Ele pede-me que escreva o nome da autora de O Lustre num papel e depois mostra-mo em alfabeto cirílico. É uma excepção ao ritual que se vai repetir muitas vezes nos dez dias de viagem que tenho à minha frente. Depois de Clarice Lispector, vou ser sempre eu a pedir aos outros que me escrevam nomes de pessoas e lugares em alfabeto latino.
É complicado viajar na Ucrânia porque a esmagadora maioria das pessoas não fala inglês - sobretudo nas cidades mais próximas da Rússia, como Kharkiv e Donetsk, e por causa do alfabeto cirílico. Não há indicações em alfabeto latino nas ruas, nos principais monumentos ou no metropolitano e isso obriga a um trabalho árduo de navegação. Já os menus dos restaurantes estão quase sempre nos dois alfabetos.
Apesar disso, e dos cuidados que convém ter em matéria de segurança, Kiev é uma cidade onde rapidamente nos sentimos confortáveis. O ambiente é decididamente europeu. Os cafés são muito agradáveis e variados, há lojas e restaurantes para todos os gostos. Há jardins enormes (neste país tudo tem uma dimensão colossal) nas zonas centrais das quatro cidades onde estive. É agradável passear nas ruas e é curioso mergulhar nas labirínticas passagens subterrâneas cheias de lojas, que são os centros comerciais de Inverno.
O metropolitano é muito barato e eficaz: os comboios passam de dois em dois minutos e, sempre que um parte, um cronómetro dispara e conta o tempo até à partida do seguinte.
Apesar disso, as carruagens andam sempre cheias: estamos numa cidade de cinco milhões de habitantes. A arquitectura das estações é um exemplo imperdível de grandiloquência soviética, seguindo a matriz do de Moscovo. As escadas rolantes descomunais conduzem-nos aos átrios amplos, com tectos abobadados dos quais estão suspensos enormes candelabros. O pior é os mapas com os nomes em caracteres latinos estarem dentro das composições e ser quase impossível ver o nome da estação onde estamos quando o comboio pára. É o que se consegue por duas hrvinas (dois cêntimos) a viagem. Outro problema: nas estações em que duas linhas se cruzam, cada uma tem um nome diferente, o que torna a orientação mais penosa para os desgraçados que viajam pelo alfabeto cirílico como Stanley procurando o dr. Livingstone em África: presumindo e com sorte acertando.
À superfície, essa grandiloquência dos edifícios estalinistas é esbatida por se tratar de uma cidade muito acidentada - Kiev é mais uma cidade de "sete colinas", como Lviv, aliás - num país que é rigorosamente plano de uma ponta à outra, com excepção dos Cárpatos.