O sol já queima e pelas serenas e correntes águas da praia fluvial há gente a banhos logo pela manhã: pais com miúdos pequenos, rapazes pré-adolescentes de vozes a engrossar em brincadeiras aquáticas, raparigas que vão pondo um pé na água gelada mas que não se atrevem a mostrar o biquíni e muito menos a mergulhar.
Estamos mesmo no centro do país. A menos de dez quilómetros, um grande marco, em forma piramidal, assinala o centro geodésico de onde se avista desde a serra da Lousã até às planícies alentejanas (há dias, como o de hoje, de céu limpinho, em que se distingue até a serra da Estrela). Talvez seja esta centralidade que nos impele a sentir um regresso às mais primitivas origens. Isso e os recantos que o pinhal (a recompor-se a olhos vistos dos incêndios que lavraram há uma década e que destruíram grande parte da mancha verde do concelho de Vila de Rei) continua a proteger.
Por cada um deles descobre-se uma ruralidade que vai muito além das tradições agrícolas. É uma ruralidade que também se alimenta de mitos e lendas. É nesta senda que não resistimos a fazer batota e, em vez de seguirmos já rumo ao mar — embrenhando-nos, como nos propuséramos, pela extinta região da Beira Litoral, designação que, embora tenha desaparecido com a Constituição de 1976, continua a fazer parte do vocabulário e imaginário lusos —, recuamos à margem esquerda do rio Zêzere para descobrir o que se esconde para lá da praia fluvial do Penedo Furado.
Não se trata de uma estreia pelo local; mas da última (e única) vez que aí tínhamos estado, entráramos pelo rio e a expedição, que fazia a descida do Zêzere, nunca chegou à praia, ficando-se pelas piscinas naturais. A experiência, no entanto, tinha sido suficientemente emocionante para prometer um regresso mais calmo. E, embora hoje, 15 anos depois, o Penedo Furado ande nas bocas do mundo (sobretudo depois de ter feito parte dos 21 candidatos às 7 Maravilhas - Praias de Portugal), ainda permanece suficientemente longe dos roteiros do turismo para justificar uma redescoberta. Desta feita, por terra — embora não seja de desprezar uma tentativa de o conhecer por água, usando para isso uma canoa —, numa caminhada que termina junto às infra-estruturas de apoio à praia fluvial.
É então que a água se apresenta como irresistível. E confesse-se que, após o choque do primeiro contacto, continuamos em mergulhos e mais mergulhos, deixando-nos, num suave boiar, absorver por tudo o que nos rodeia. Inclusive pelas histórias que o local inspira.
Entre mitos e lendas
O concelho é, dizem-nos, pródigo em lendas. E a origem de uma das mais antigas está, literalmente, cravada na pedra. A Bicha Pintada é “apenas” um fóssil com mais de 480 milhões de anos, como se pode ler numa placa explicativa. Mas a sua forma serpenteante é associada, por alguns, ao culto ofiolátrico celta. E não só. Diz-se que foi criada por uma criatura onírica quando esta foi aprisionada na forma de uma serpente. História que nos vai invadindo o imaginário à medida que avançamos pela margem direita da ribeira de Codes. Uma narrativa de uma bela princesa moira que, entre o Penedo Furado e a Bicha Pintada, guarda um bezerro dourado numa gruta bem escondida e que “só o dará a amor sem medo”.