Chegada a hora de sair de cena, que seja com o prato com que se delicia desde miúdo e um vinho do Douro, se for Inverno, ou um Alvarinho, se o dia estiver quente. “A morte há-de chegar. Um dia de cada vez.”
Bertílio Gomes
Chapitô à Mesa, Lisboa
É preciso papel e caneta para anotar a ementa. Bertílio Gomes tem uma história para cada prato que gostaria de saborear na despedida, mas ele que já plantou árvores, que já tem dois filhos e que já escreveu livros, requisitos que um dia alguém apontou como necessários para um homem ser completo, transtorna-se com a ideia do fim por todas as coisas que ainda não fez. E avisa: “Ainda não estou preparado”. Talvez, por isso, a ementa seja longa para se demorar na degustação.
Para abrir o apetite: “Pão algarvio, de cabeça, ou alentejano, porque o melhor é da fronteira entre as duas regiões, por Martim Longo, Alcoutim, Mértola. Presunto pata negra Cinco Jotas ou Joselito, produtos excepcionais, que adoro, porque é uma arte o tempo que é preciso para se chegar ao ponto certo, 36 meses no mínimo, entre a criação e a maturação. Vale por si, basta uma cerveja a acompanhar”. O filho Gabriel de cinco anos, que se apresenta como “o cozinheiro” partilha com o pai o prazer do pata negra, de resto, como quase tudo, mesmo que o pai nunca o tente influenciar.
A entrada é uma ode marítima: percebes, lagostins e ouriços-do-mar. Os primeiros são os predilectos do filho Valentim, de 11 anos, os segundos são de “uma delicadeza ímpar”, apenas cozidos e servidos com maionese. “Entre Fevereiro e Março, acontecem as maiores marés do ano, e costumo ir com a minha mulher, os meus filhos e os meus padrinhos, apanhar ouriços numa praia no Algarve, tornou-se uma tradição”, conta. Nessa altura, consegue chegar a locais habitualmente inacessíveis e, junto às rochas, os bichos da classe dos equinodermos crescem em abundância. “Comê-los, acabados de apanhar, é algo inigualável por mais que se tente recriar o cenário nos restaurantes”. A localização concreta seguirá com ele no corredor com a promessa de não revelar o segredo.
O peixe nem numa travessa caberia. “Um pregado grelhado, inteiro, com pelo menos cinco quilos, com bastante flor de sal da Salmarim, grelos de couve e um fio de azeite”, precisa.
“Acabaria com a carne”, diz, como se o menu até aqui fosse leve e ainda tivesse barriga para continuar, “umas galinholas com foie gras feitas com a tripa, cozinhadas quatro a cinco horas, em vinho do Porto, com um toque de tomilho e folha de louro”, um clássico da cozinha francesa. Todos os anos, costuma prepará-las assim para uns clientes que as caçam na Irlanda e as trazem para um almoço-convívio. “E o molho? É qualquer coisa...”. O chef do Chapitô à Mesa saliva só de pensar.
“Também podia ser uns boletos. Já é muita coisa?” O chef denuncia a ansiedade ao pensar no momento. E se deixa de fora um ingrediente fundamental? Não dispensa a sobremesa, claro, “um sorbet de maracujá ou um gelado de eucalipto, frescos e não muito pesados”. Como se fosse uma bola de gelado a fazer diferença na pressão dos acontecimentos. Nenhuma árvore, nenhum filho, nem nenhum livro prepara um homem para enfrentar a morte. Mesmo de barriga cheia.