Fugas - Viagens

  • Um ciclista passa pela Praça de Tiananmen, em Berlim (arquivo).
    Um ciclista passa pela Praça de Tiananmen, em Berlim (arquivo). Guang Niu/Reuters
  • Em Xangai
    Em Xangai Reuters
  • Guerreiros de terracota no Museu de Qin.
    Guerreiros de terracota no Museu de Qin. Jason Lee/Reuters

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Ir à China ver o mundo a mudar

A Praça de Tiananmen vale apenas pelo seu lado simbólico, por nos levar a imaginar em que ponto concreto terá ocorrido a célebre cena do manifestante fazendo frente ao tanque de guerra, e por ser ponto de passagem obrigatório para a Cidade Proibida. Já o que fica para lá da porta assinalada por um gigantesco retrato de Mao, é obrigatório e difícil descrever. Tomem-se alguns factos e alguns números: uma área equivalente a 72 campos de futebol contínuos; 9900 quartos, capazes de albergar 6000 funcionários, a família imperial e as centenas ou milhares de concubinas do imperador; sede do poder das dinastias Ming e Qing entre 1420 e 1912, quando o último imperador, Puyi, foi deposto e a China entrou na convulsão das guerras civis e das guerras mundiais. Despojada de muitos dos seus tesouros (estão em museus ou em Taiwan, para onde foram quando as tropas de Chiang Kai-Shek se refugiaram na ilha após a derrota frente ao Exército de Libertação Popular de Mao, em 1949), a Cidade Proibida vale tanto pelo que mostra como o que deixa supor.

Com a ajuda dos filmes (O Último Imperador, de Bernardo Bertolucci funciona na perfeição), podemos imaginar o que seria aquele lugar fechado ao mundo, com rampas de acesso onde só o monarca podia passar, onde só eunucos podiam circular na área das concubinas, podemos imaginar o ambiente de intrigas, de ostentação e de claustrofobia que serviram de matriz à política e condenaram a China ao isolamento que durou até à queda do império. Infelizmente, porém, é difícil fazer esse exercício na própria Cidade Proibida.

Aí, podemos maravilhar-nos com o requinte das construções, com a beleza das praças interiores, com a expressividade das esculturas espalhadas pelo recinto, com a beleza das árvores e das flores na área das concubinas - só aqui há vegetação, pois de resto o chão da Cidade tem várias camadas de pedras para evitar a construção de túneis de acesso. Mas além da beleza evidente, as multidões de chineses da Manchúria, do Tibete ou das estepes de Xinjiang e, ainda mais, os seus guias de megafone contaminam o lugar com uma névoa de feira popular que nos afasta da aura mística, quase irreal, que a Cidade contém.

Esta é, aliás, uma característica de todos os lugares monumentais na China de hoje - só na Via Sagrada que conduz aos mausoléus dos imperadores Ming se pôde ouvir, por instantes, o silêncio. Os nomes das ruas, dos lugares ou dos monumentos são apelativos à reflexão: templo da Longevidade Celestial, Porta da Harmonia Suprema, Porta da Pureza Celestial, Salão da Harmonia Central, Salão da União entre o Céu e a Terra, Palácio da Longevidade Tranquila... Mas essas designações são anteriores ao turismo de massas. E ao uso das tecnologias que os chineses lhe emprestam. Eles (e elas) falam alto e sempre, e ainda assim precisam de megafones, com colunas roufenhas coladas às costas, para poderem ouvir dos guias os milagres dos imperadores ou a superioridade do regime.

No Palácio de Verão, por exemplo, a atenção ao lado Kunming, à bela ponte que o atravessa (a ponte Marco Pólo) ou ao maravilhoso corredor exterior coberto de frescos com motivos rurais ou com cenas da natureza tem de ser compartilhada com os apelos dos vendedores de bugigangas (uma novidade, que há apenas três anos não existia). Ainda assim, é impossível não reparar na beleza dos palácios nas encostas ou junto ao lago, na exuberância das flores de lótus que se encostam às margens, no pormenor idílico de homens em cima de botes a retirar moliço, no horizonte das águas que turistas cruzam em pequenos barcos. É impossível também não recordar a pilhagem e a destruição provocada pelas tropas anglo-francesas aos seus palácios, em 1860, na segunda guerra do ópio, ou naquela imagem de uma China orgulhosamente só que se constata no Barco de Mármore. Construído em 1755 pelo imperador Qianlong, foi alvo de obras de restauro na era da odiada imperatriz Cixi, em 1893, com verbas que estavam destinadas à construção de uma armada moderna. Nessa altura, como nos séculos anteriores, a China via-se como uma potência eterna, insusceptível de ser abalada pelo exterior. O Barco de Mármore simboliza essa insensatez.

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