Marlene, a nossa guia, é de Puerto Maldonado, já trabalhou em Cuzco (agora mais perto graças à nova auto-estrada interoceânica, que liga o noroeste do Brasil à costa sul do Peru — as dez horas actuais já foram uma semana, isto quando não chovia), mas voltou a casa, onde, diz, podem chegar a fazer 10 graus de temperatura em Julho e Agosto. São as chamadas “friagens”, algo que a nós soa como um mito.
Se Puerto Maldonado nos parece uma sauna, percebemos que, afinal, é o paraíso quando, depois de um percurso de mais de uma hora por estradas de terra, aqui e ali pontuadas por pueblos de plástico (pequenas povoações com construções precárias que foram originalmente construídas por garimpeiros) e por ribeiros lamacentos onde vemos gente a banhar-se ou a relaxar como se de um jacuzzi estagnado se tratasse (motos estacionadas à beira), chegamos à beira do rio Tambopata.
Só o movimento do barco a sulcar as águas traz algum alívio e compreendemos a família que vemos a banhar-se junto à margem. Mas, uma vez fora, uma vez na selva, a humidade é opressiva, aprisiona-nos e passamos a conviver com duas peles: a nossa e a da roupa que, apesar de leve e de algodão, como recomendado, estará sempre colada à pele.
O primeiro contacto com a floresta não conta como experiência, consideram os guias — afinal, é apenas uma caminhada da beira-rio até à pousada. Contudo, para nós é o embate com um cenário barroco, uma sinfonia natural saturada, feita de excessos que põe todos os sentidos em alerta máximo. A vista da pousada tem o mesmo efeito de um oásis no deserto — o aglomerado, entre as árvores, de edifícios palafitas de madeira envernizada é um oásis.
Está perfeitamente integrado na floresta e tem confortos insuspeitos, a começar no pequeno spa (que não experimentamos) e passando pelas salas ao estilo lounge ou bar, sempre abertas para a floresta, com varandins a fazer de fronteira — há poucas paredes aqui, apenas a separar os quartos, mesmo estes sem a parede virada para a floresta. No nosso quarto, um dos superiores, um hammock está estrategicamente disposto para esta e à noite é lá que esperamos o sono chegar, antes de entrarmos na cama-tenda (o mosquiteiro é grosso): apenas uma luz ténue vinda de outros quartos (só há electricidade entre as 18h e as 22h, no resto da noite há lamparinas nos espaços comuns) a iluminar o arvoredo denso, o ruído incessante da selva (a brisa a agitar as árvores, os sons repetitivos, ocasionalmente guturais) e o ar denso pleno de odores estranhos — uma atmosfera quase fantasmagórica. Ou primordial.
Não sentimos tanto essa ideia de início de tudo, de início do mundo, como nas margens do lago 3 Chimbadas. Nova viagem de barco e uma caminhada de cinco quilómetros selva adentro (não pareceu tanto, mas estávamos preparados para o pior) até à margem do lago, que é um estreito ancoradouro quase engolido pela vegetação. O “responsável” do lago espera-nos com o neto — é domingo, não foi à escola. O barco de madeira desliza quase imperceptivelmente pelas águas negras e o silêncio é imperativo, avisa Marlene. À nossa volta, água abraçada pela massa verde de tons variáveis e formas excêntricas que se sobrepõem em competição desenfreada — há árvores que sobem isoladas acima de todas as outras, troncos claros e escuros — e estamos quase na pré-história à espera de ver os primeiros lagartos trocarem a água pela terra.