Estamos na órbita da capital do vice-reino, olhos bem abertos para antigas casonas, com as características varandas de madeira, muitas delas agora desprovidas da grandiosidade original, com funções bem mais prosaicas do que as de moradia da nobreza crioula: algumas foram recuperadas como espaços expositivos, outras para comércio. Jirón de la Uniõn, Jirón de Carabaya, Jirón Conde de Superunda, Jirón Lampa: jironeando por aí podíamos ser assaltados pela melancolia de tempos pasados, não estivessem as ruas em bulício total e com inesperada animação internacional — se nas ruas europeias a música peruana, feita de flautas andinas, é recorrente, nas ruas de Lima encontramos um grupo de rock argentino. E entre todo o comércio, um cabeleireiro ostenta na montra, um primeiro andar, uma fotografia de Cristiano Ronaldo.
De ouro e kama sutra
Afastarmo-nos do centro histórico não significa fugir da história em Lima. Ela emerge, ainda mais antiga, nos recantos mais inesperados como vulcões pouco adormecidos — não é à toa que escolhemos a imagem de vulcões, uma vez que as construções piramidais são constantes nestes vislumbres do passado, como objectos alienígenas entre a Lima moderna. Surgem como uma lembrança permanente de que o Peru pré-colonial nunca desapareceu completamente — como que a dar razão a Taulichusco: “Não vamos desaparecer”, disse aos súbditos quando lhes deu ordem para dispersarem no território na altura da chegada dos espanhóis.
Num país mestiço não chegamos a compreender se as velhas feridas ainda emanam sangue como o que escorria nestas huacas, santuários, em cerimónias aos deuses — certo é que podemos dizer de Lima o que Octavio Paz disse da Cidade do México: aqui “várias épocas se enfrentam, se ignoram ou entredevoram sob uma mesma terra ou separadas por uns quilómetros” (e se aqui há esta dinâmica, não muito distante da capital, a história está encapsulada em ruínas: a norte, Caral, a cidade mais antiga da América — 2600 a.C. e pirâmides coevas das egípcias —, a sul, Pachacamac – pacha, terra, qamac, alma, “alma da terra” na língua quéchua, esta cidade sagrada).
A Huaca Pucllana (o nome vem do quéchua pucllay, jogo: local para jogos rituais) é a mais bem conservada de Lima, onde se crê que existam 400, embora destas poucas estejam referenciadas e menos ainda conservadas. Mesmo as abertas ao público, não estão a salvo: Huaca Huallamarca, por onde passamos de carro, (ainda) tem um habitante na sua zona reservada que não se coíbe de estender roupa à porta do casebre.
Huaca Pucllana tem outro destino, se calhar mais condizente com o seu antigo estatuto de centro cerimonial e administrativo da antiga cultura lima, que ocupou este vale entre os séculos II e VII — tem direito até a um restaurante, onde almoçamos na esplanada coberta ao lado das ruínas. O complexo continua a ser escavado e nele destaca-se a sua pirâmide de 25 metros de altura construída em tijolos de adobe dispostos quase como livros expostos (a chamada “técnica de livreiro”, ideal para resistir a terramotos), está rodeada de outras mais pequenas, pátios e praças cerimoniais que terão visto muito sangue derramado — por exemplo, de cada vez que terminavam uma nova pirâmide, os lima celebravam com uma grande festa que incluía sacrifícios de mulheres da elite, em honra das divindades femininas. Esta huaca teve uma área de 20 ou 30 hectares, actualmente estão seis à superfície. O resto está engolido pelos prédios e casas do distrito de Miraflores, zona nobre da capital, onde na mescla arquitectónica que se desenha não falta influência britânica.