Fugas - viagens

Kiev, a porta da Ucrânia

Por Miguel Gaspar

O Hotel Slavutich ergue-se na margem esquerda do rio Dniepr, em Kiev (Kyiv em ucraniano), como mais uma das inúmeras memórias vivas (neste caso, habitáveis) da União Soviética que é possível encontrar na Ucrânia.


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"É um livro aberto", diz Vladimir, o motorista do táxi que apanhei no aeroporto, descrevendo a forma do edifício. Dias antes de chegar à capital ucraniana saíra na revista alemã Der Spiegel um artigo relatando como vários hóteis ucranianos tinham sido literalmente assaltados e confiscados pelas máfias locais, a pensar na carteira dos fãs que em Junho começarão a desembarcar aqui para assistir aos jogos do Euro 2012. O primeiro hotel mencionado no artigo era o Slavutich. E eu estava lá. Na entrada estava uma meia dúzia de matulões, vestidos de preto, mal encarados. Nenhum interrompeu o suave dormitar ao fim de uma noite de vigia nem sequer para dizer bom dia. O meu primeiro comité de recepção na Ucrânia era promissor.

Após umas horas de repouso num quarto que permitia chegar a algumas conclusões seguras sobre o fim do comunismo, estava pronto para a minha primeira experiência de encantamento. Fundada no século V, Kiev cresceu como um entreposto na rota fluvial usada pelos varegues, vikings que desceram pelos rios do mar Báltico até ao mar Negro. Na Primavera, quando chegava o degelo, esses barcos largavam de Kiev rumo a Constantinopla. Para a compreender a cidade, portanto, é preciso começar pela relação que estabelece com o Dniepr.

Tinha acabado de sair do hotel, que fica na margem esquerda do rio, que é largo como o Tejo em Cacilhas ou mais, apesar de estarmos a centenas de quilómetros da foz. Do lado de lá, espraia-se uma encosta arborizada na qual se inscrevem as cúpulas verdes e douradas do mosteiro ortodoxo da Pecherskaya Lavra. Começado a construir no século XI, é o mais antigo templo da cidade que, entre os séculos IX e XIII, foi capital de um principado (o Rus de Kiev) que ocupava quase toda a actual Rússia europeia, quando Moscovo ainda nem existia. É o primeiro mosteiro cristão no espaço que hoje é a Rússia. Os monges viviam em grutas no sopé da colina, que hoje são um lugar de peregrinação.

Kiev é o ponto de partida de uma civilização. É "a mãe de todas as cidades russas", através da qual o cristianismo e a arte bizantina entraram nesta parte da Europa.

Cúpulas de ouro a brilhar, telhados verdes e paredes brancas, misturadas com o verde suave das árvores dispersas na encosta que acompanha o rio. Há uma continuidade perfeita entre o espaço urbano e o contexto natural. É uma frente fresca, que se estende por vários quilómetros, ao pé de um rio navegável, com várias ilhas e praias fluviais de areia. Um ecossistema amplo e magnífico: a mão do homem fica escondida, com excepção dos prédios mais altos e das cúpulas douradas das igrejas e dos mosteiros, que ou aclaram o cinzento nos dias de chuva e nevoeiro ou sublinham o brilho do sol nos dias claros.

Cada uma das quatro cidades ucranianas que vão receber o Euro 2012 - Kiev, Lviv, Kharkiv e Donetsk - é uma porta de entrada para um período da História e uma parte da identidade do país, do fim do primeiro milénio ao século XIX, do principado de Kiev aos impérios que a governaram e dividiram até à independência, em 1991. Kiev é fundamental para essa identidade por ter sido a primeira grande cidade nesta parte do mundo eslavo e o ponto de partida para a respectiva cristianização, que começa com o baptismo do príncipe Vladimir, em 988.

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