Um jogo de sombras, portanto, Havana, tantas vezes elogiada pela sua luz. É uma luz que é bênção mas também maldição; é excessiva e é escassa. Durante o dia buscamos as sombras das arcadas (Carpentier chamou-lhe a cidade das colunas) nos edifícios coloniais, durante a noite somos atraídos pelos pontos de luz; durante o dia a luz é quase transparente de tão intensa; durante a noite são clarões mortiços e amarelos numa cidade onde os apagões são frequentes. Há, portanto, sempre uma aura irreal (às vezes, surreal) a cobrir a cidade.
Tão surreal como alguém chamar-se San Valentín e até parecer músico. Camisola da selecção mexicana, calças sem cor, guitarra ao peito e canções que começam e não acabam. “No soy musico, soy luchador de la vida”. Tem 62 anos e o governo não o deixa trabalhar. “Estive em Angola a lutar, agora dizem que tenho trauma de guerra.” Ele tenta fazer outras coisas. “Posso trabalhar um dia inteiro na construção civil e recebo um CUC. Isso não é exploração do homem pelo homem?”.
É Alberto, um velho amigo que se cruza aqui na esquina em frente ao Capitólio nacional, quem lhe responde. “Vivem mal? Antes da revolução também. Só tive sapatos com 14 anos. E havia muitos mendigos, agora todos estudam, temos médicos, habitação.” “Deram-nos estudos mas matam-nos à fome...”, contrapõe San Valentín. Com 71 anos bem conservados (ao contrário do amigo), calças verde alface, camisola Adidas, chapéu, Alberto acabou de estacionar o seu VW carocha (modelo antigo e cor quase fluorescente), de onde saiu com um jovem. San Valentín inveja-lhe a vida: tem uma casa para alugar. “Fiz de tudo”, contrapõe Alberto, “limpei sapatos, fui criado numa casa…”. Também esteve em Angola e teve um amigo de Granada — com quem troca emails, que nos mostra no seu Blackberry — que “ajudou muito”. “Nem todos têm sorte”, repete San Valentín, mais para si do que para nós. “Eu batalhei, deixei de beber, de fumar, tudo”, insiste Alberto. O amigo confessa: “Com dez dólares por dia eu era feliz, podia manter a minha família. Assim, nem um [dólar] consigo.” À nossa frente consegue um euro — despedimo-nos e dirige-se a uma gelataria ao lado do clube de boxe Kid Chocolate, de onde sai com um sorvete e um sorriso largo.
Estamos no Prado, que em Madrid é um museu e em Havana uma avenida cujo nome oficial é Jose Martí. Porém, ninguém conhece assim esta passarela que é paradigmática da arquitectura de Havana — monumental e decadente. Há, claro, edifícios mais bem conservados, mas muitos apresentam-se deslavados e deformados, mais não seja porque o que anteriormente era casa de uma família agora é dividida por muitas, demasiadas. Tal é mais notório quando o Prado se torna uma rambla: microcosmos habanero que são quase colmeias, com pessoas às janelas, conversando para cima, para baixo, para os lados. No passeio, vemos famílias a caminhar, casais a namorar, crianças a brincar, mulheres e homens a insinuar-se a quem passa.
Pode dizer-se que o Prado é uma fronteira em Havana. Construiu-se no que antes era a muralha e esta é a artéria que separa a cidade velha da cidade “moderna”, a que fugiu para Centro Havana e depois para o Vedado e Miramar. Estes dois municípios são o contraponto norte-americano à cidade “espanhola”: os quarteirões estão perfeitamente demarcados, as ruas têm números e são muito arborizadas e até há uma 5.ª Avenida em Miramar, que era o bairro mais luxuoso da Havana pré-revolução. O Vedado estava reservado à média burguesia e era muito comercial — ainda hoje a Calle 23 é um eixo referencial, com cafés, restaurantes, teatros, cinemas. Em Miramar, onde se construíram muitos hotéis nas duas últimas décadas, os palacetes da alta burguesia cubana, ostentosos e rebuscados, permanecem mais ou menos intactos — há embaixadas e outras representações diplomáticas, sedes de empresas estrangeiras e muitas reconversões em edifícios residenciais e centros comunitários, que muitas vezes subvertem a integridade arquitectural em função do pragmatismo funcional.